quinta-feira, 25 de outubro de 2012

CAINDO NUMA GELADA


Por Vicentônio Silva


 

 

Percalços, obstáculos ou impedimentos são encontrados em todos os trajetos, mas se deseja encurtar o caminho aos céus, adote um primo que more em Marília, trabalhe em São Paulo e visite-a de vez em quando sempre trazendo idéias brilhantes cujo testemunho, na capital paulista, centro do desenvolvimento, assegurará bem-estar ao seu cotidiano.

 

O primo discorrerá sobre o trânsito cardíaco, as oportunidades de empregos e negócios milionários respirando nas esquinas, nas mesas de bares, na fila do restaurante de quilo ou no cruzamento da Paulista com a Consolação. Abordará os principais temas de economia, sugerindo mudanças na política cambial e enfatizando a necessidade de equilíbrio do dólar a fim de ajustar as contas externas das empresas. Defenderá as transformações urbanísticas e elogiará a lei da cidade limpa. Criticará arduamente os problemas sociais, os menores abandonados ou os engaiolados em estruturas vis e apontará a solução à violência escolar ou universitária. Por fim, e não menos importante, incentivará a sustentabilidade, olhará seu telhado e sugerirá a adoção de placas de iluminação solar: mais economia, menos gasto de eletricidade, conforto total no ar condicionado ligado vinte e quatro horas.

 

Claro que, mulher inteligente, engajada nos modismos e solícita às orientações do primo – afinal, vive em São Paulo, conhece largamente as estratégias de sustentabilidade que salvarão o planeta – comprará as placas, as telhas e os materiais a fim de modificar a estrutura de sua casa e, consequentemente, dar mais qualidade de vida à família. Não apenas satisfeito em dar os preciosos conselhos, o primo também se disporá a ajudá-la a efetuar as transformações e, no dia seguinte, por volta das seis e meia da manhã, poucos minutos depois de sua mãe sair à caminhada diária com o intuito de atualizar as notícias – mulher jamais fofoca, apenas atualiza as notícias, ele baterá à sua porta, arreganhará os dentes, apontará a escada improvisada em cima do fuscão bala:

 

- E aí, prima? Pronta?

 

Você escovará os dentes, comerá pão, geléia, ovos mexidos, presunto, queijo e duas fatias de mamão, voltará a escovar os dentes, vestirá calças jeans de oito bolsos a fim de armazenar as ferramentas ao trabalho, ajudará o primo a retirar a escada do fuscão bala, mas antes de armá-la, lembrar-se-á do freezer problemático que, por uma válvula solta, encheu-se de gelo. Com a ajuda do primo – sempre sorridente e sempre da capital – empurrará o freezer até o quintal onde, debaixo do sol quente fulminante, os cachorros brincarão latindo com a agitação da manhã de sexta-feira.

 

Seu primo então se comprometerá a segurar a escada e a zelar pelo seu bem-estar. Dando-lhe orientações de instalação do teto solar, aconselhará o uso de mangueira de jato forte com o objetivo de limpar as telhas antes de qualquer mudança e, sem perder tempo, você subirá a escada enganchando, num dos bolsos, a ponta do janto de água. Em cima do telhado, olhará em volta e admirará Marília Bela, batizada pelo fundador da cidade em homenagem à Marília de Dirceu. Do outro lado da rua, crianças jogarão futebol utilizando quatro tijolos como traves.

 

Sua vizinha do lado esquerdo, observando sua intrepidez, perguntará de sua mãe e você, sempre solícita e delicada, dará uma volta de cento e oitenta graus a fim de responder-lhe. Mudança de posição, acionamento da alavanca, a água esguichará implacavelmente. Desequilibrada, ainda terá sorte de cair sobre o primo que, percebendo o desastre, pensou em correr para dentro de casa, mas o pensamento não correspondeu à ação.

 

A vizinha que testemunhara a queda e as crianças que ouviram os gritos chamarão os bombeiros, a polícia e, de quebra, a imprensa. Os bombeiros tentarão entrar no quintal para os primeiros socorros, mas os cachorros, apesar de pequenos, são ferozes.

 

Voltando da caminhada, sua mãe se exasperará com a multidão acabando com as orquídeas do jardim e, diante dos fatos, fixará seus olhos:

 

- Da próxima vez que ele – apontará para o primo – aparecer com a idéia de instalar aquecedor solar no teto, arrebente-o na cabeça dele!

 

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 26 de outubro de 2012.

sábado, 22 de setembro de 2012

RESULTADO DO CONCURSO DE CRÔNICAS LAURA FERREIRA DO NASCIMENTO - EDIÇÃO 2012


A Comissão Organizadora do Concurso de Crônicas Laura Ferreira do Nascimento edição 2012 tem a grata satisfação de anunciar os cinco classificados que, entre 153 inscrições, conseguiram, de alguma maneira, despertar o interesse dos membros da Comissão Julgadora que, de maneira impessoal e imparcial, avaliou os textos enviados de todo o país e do exterior.

O tema “nepotismo” – escolhido durante as reuniões entre os diretores da ADPCIM (Associação de Defesa e Proteção do Patrimônio Público e dos Direitos do Cidadão de Maracaí/SP) e da ACULTIM (Associação de Cultura e Turismo de Maracaí) – proporcionou a elaboração de crônicas de adolescentes, jovens, adultos, idosos, professores, escritores, editores, jornalistas, mestres e doutores das mais diversas áreas.

Aos membros da Comissão Julgadora, aos diretores da ADPCIM e da ACULTIM, nosso muito obrigado.

Entre os concorrentes, cinco classificaram-se na seguinte ordem:

 

1º LUGAR

Crônica – Colar de pérolas

Pseudônimo – Maria Feitosa

Candidata: LETÍCIA MAURA CONSTANT PIRES – jornalista formada pela PUC (Pontifícia Universidade Católica) em 1978. Trabalhou no “Jornal da Tarde”, no “Shopping News” e em diversas assessorias de imprensa de São Paulo. Publicou os livros “Poemas de Candeia” (1978), “Espelho Eu” (1987) e “Casa 12” (2007, pela Companhia das Letras). Cronista do site Taste, trabalha em Paris na Radio France International. Cantora e compositora com discos gravados. Pretende se apresentar em São Paulo e no Rio de Janeiro em 2013.

PARIS – Franca.

Possui endereço e conta bancária no Brasil, conforme estipulação de edital, para envio de livros e depósito de dinheiro.

 

2º LUGAR

Crônica – Em família

Pseudônimo – Alfredo Severino

Candidato: MOACIR LOPES POCONÉ NETO – Graduado em Letras pela Universidade Tiradentes em 2008. Bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal de Sergipe em 1996. Professor de redação, literatura e português do ensino médio e escrivão de Justiça.

Lagarto – Sergipe.

 

3º LUGAR

Crônica – O senador

Pseudônimo: Albino do Angico

Candidato: AGLIBERTO CERQUEIRA – Publicitário graduado pelo Instituto Metodista de São Bernardo do Campo. Publicou o livro “O quá quá quá do cisne preto – um passeio ao som do rádio” (2006) e o conto “O ovo na cabeça do homem” na antologia Anjos de Prata.

Santana de Parnaíba – São Paulo.

 

 

4º LUGAR

Crônica – O protegido

Pseudônimo: Lariel Frota

CANDIDATA: MARLI RIBEIRO DE FREITAS – professora e escritora, integra antologias publicadas por editoras. É autora de “Baú de Cassandra”, obra lançada em agosto de 2011 e com a qual participou do 26º Salon International du livre et de la presse  em Genebra, na Suiça. O texto classificado baseia-se em romance ainda inédito.

São Paulo – SP

 

5º LUGAR

Crônica – Nepotismo

Pseudônimo: Eudemim Vivêncio

Candidato: RAFAEL ALVARENGA GOMES – bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de filosofia da rede estadual do Rio de Janeiro. Escreve em jornais impressos e eletrônicos de Cabo Frio (RJ) e Armação de Búzios (RJ). Autor do livro juvenil “Dia e noite no jardim”.

Cabo Frio – Rio de Janeiro.

 

 

A Comissão Organizadora, a Comissão Julgadora, os patrocinadores ACTIVE SYSTEM e Nandex Informática (Paraguaçu Paulista – SP), os diretores da ADPCIM e da ACULTIM parabenizam os concorrentes classificados assim como todos os inscritos na segunda edição do Concurso de Crônicas Laura Ferreira do Nascimento.

 

Nos próximos dias, o presidente da Comissão Organizadora entrará em contato – ou por telefone, ou por e-mail – a fim de confirmar dados e fornecer orientações sobre a entrega dos prêmios (envio de livros e depósito bancário).

 

A todos – colaboradores, patrocinadores e concorrentes – os nossos mais entusiasmados agradecimentos.

 

Comissão Organizadora.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

MOTOBOY


Por Vicentônio Silva


 

 

Equivoca-se quem pensa que a vida de motoboy é uma mamata. Acorda-se cedo, dorme-se tarde, come-se mal, torra-se no calor, tirita no frio, sem tempo de curtir os amigos, a família e os jogos de futebol, sem previdência social, sem férias, sem décimo terceiro salário, sem feriados, dias mais alegres financeiramente, outros menos extasiantes, contudo, um consenso: quem vira motoboy possui mil e uma aventuras!

 

A mais recente delas aconteceu aqui mesmo, em Presidente Prudente, quando o rapaz de dezenove anos, trabalhando há dois dias numa dessas agências, recebeu a incumbência de entregar a passageira – acabara de chegar de Campo Grande e levava incômoda bolsa de viagem – à saída para Martinópolis. Convenhamos que o trajeto – entre a rodoviária e a saída da cidade – nem é tão comprido. O motociclista, equilibrando-se como dava e limitando-se a quarenta quilômetros por hora, parou à calçada da cliente pouco menos de dez minutos depois. Domingo à tarde, cidade morta, trânsito livre.

 

Embolsaria os seis reais da corrida – e, dando sorte, mais dois ou três pelo desvelo em transportar cuidadosamente e sem reclamar a bolsa de viagem – quando a mulher, destrancando o portão e puxando a bagagem, informou que o dinheiro o esperava dentro de casa. Antes de entrar, um banho. Ele, não ela.

 

O rapaz arregalou os olhos, imaginou tratar-se de piada. Diante da exigência, incrédulo e necessitado do emprego, atravessou exatos vinte e sete quarteirões até chegar em casa, ligar o chuveiro, ensaboar-se, colocar xampu, mais uma chuveirada, enxugar-se, pentear o cabelo e, aproveitando que já estava em casa, trocar cueca, meias, sapatos e camisa.

 

Retomou os vinte e sete quarteirões, dedo no interfone. A passageira olhou-o pela câmera, abriu a porta, destrancou o portão, convidava-o a entrar na casa a fim de pegar os seis reais da corrida quando perguntou se tinha mentido: realmente tomara banho? Ele confirmou a higienização, camisa limpa, cabelo ainda molhado. Alegando a péssima qualidade do xampu e o enjôo causado pelo produto, exigiu novo banho sem xampu.

 

- Sou cliente antiga! Quando voltar, nem precisa tocar o interfone. Entre direto, sente-se e me aguarde. Sarei do banho em seguida.

 

Claramente qualquer pessoa dotada de discernimento mediano a mandaria ao quinto dos infernos, montaria na moto e aproveitaria o domingo ou aguardaria o chamado de novo cliente. Ele optou por refazer o trajeto de vinte e sete quarteirões, esfregar bem a cabeça, enxugá-la e, ainda por cima, pegar o secador da irmã.

 

De volta à rua, carro com três rapazes visivelmente embriagados avançou o sinal vermelho, rolou na curva sinuosa, subiu abruptamente na calçada, desapareceu em zigue-zague. Lembrou-se das recomendações do chefe: todo cuidado é pouco! Carro maluco, motorista embriagado? Mantenha distância.

 

Parou no posto de combustíveis, vinte reais de gasolina. Óleo da moto, água nas rodas. Retomou o trajeto e, mais uma vez, parou na frente da casa da cliente que, sem cerimônia, deixara o portão destrancado. Avançou cuidadosamente, abriu a porta da sala: dois jogos de sofá, um lustre aparentemente caro, um mini-bar com vinho, uísque, conhaque, taças pequenas, médias e grandes, balde e apanhador de gelo. Sentou-se no mais confortável, esticou as pernas na mesinha de centro, pegou o jornal ainda fechado, correu direto à página de esportes, posou de rico.

 

Agora, pensou satisfeito, entendia a exigência de dois banhos e a ordem de retirar o cheiro do xampu. Um ambiente daqueles não comportava imundos. Já nem se preocupava com o tempo gasto. Se estava limpo, que mal tomar uma taça de vinho depois de pegar seus seis reais? Ou ela exigiria que lavasse as mãos com sabonete francês, água mineral norueguesa e, por fim, álcool em gel do Marrocos? Secaria as mãos em toalhas irlandesas?

 

O telefone tocou. Retirou o aparelho do bolso: o chefe. Perguntou onde estava e, antes que explicasse o motivo da demora, cinco policiais arrombaram a porta, armas em punho. Você acha que os policiais engoliram a história dos banhos?

 

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 21 de setembro de 2012.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

COMPUTADOR


Por Vicentônio Silva


 

 

Chamou ao fim da tarde para mostrar-me o computador zero quilômetro comprado em dezessete suaves prestações sem juros, primeiro pagamento sessenta dias depois da compra. O técnico instalara a máquina. Apresentara-lhe os procedimentos de entrar nos sites de notícias, de esportes, de vinho, de pólo aquático, de companhias aéreas e de roteiros turísticos. Com o tempo, a curiosidade e a praticidade, descobriria novos endereços eletrônicos e perderia horas diárias na frente da tela, buscando informações esquecidas após minutos, desinteressando-se das atividades físicas eventualmente praticadas e largando no esquecimento as obrigações pessoais mais maçantes.

 

Sentou-se na cadeira da mesinha do computador, apontou-me um banco de cinco pernas – feito pelo filho mais velho numas aulas de marcenaria da escola técnica – e, sem receio, sorriso estampado e olhos provocativos, acionou o botão do estabilizador, apertou o da CPU, fixou os olhos no monitor. Sem sucesso, aguardamos dez ou quinze segundos. Calmamente, voltou a apertar o botão do estabilizador, o da CPU, fixou os olhos no monitor.

 

- Inferno! Gritou, levantando-se exasperadamente, dando a volta na mesinha, pesquisando os fios traseiros como se fosse capaz de detectar o problema. – Comprei essa máquina hoje. Hoje o rapazinho instalou, ligou, mostrou o funcionamento, deu-me algumas dicas. Bastou ele sair para, logo de cara, essa porcaria dar-me dores de cabeça. Mas, será possível?

 

Soltou cinco ou seis palavrões. Mais uma vez, iniciou o procedimento de apertar o botão do estabilizador e da CPU, olhando, angustiado e esperançoso, a reação do monitor. Nenhuma imagem, nenhuma manifestação, nenhuma letra.

 

- Também não pago nada. Fiz o negócio em dezessete prestações, sem juros, pagamento em sessenta dias. Quem disse que pago? Suspendeu a cadeira nova – comprada no conjunto com a mesinha – e a jogou de lado. Tentei acalmá-lo, contudo os olhos raivosos advertiram-me a distância necessária para manter-me inteiro.

 

Entrou furioso no quarto. Carnê das prestações. Pegou o telefone, trêmulo. Discou o número gratuito, explodiu de raiva, ameaçou o atendente. Do outro lado da linha, o rapaz solicitava a verificação de acoplamento dos fios entre o estabilizador e a CPU, entre a CPU e o monitor, entre o monitor e o estabilizador. Tentativas frustradas, xingamentos exasperados, técnico em quarenta e cinco minutos.

 

O técnico da empresa chegou aos trinta e três, período durante o qual sentamo-nos embaixo do abacateiro, conversamos sobre a ascensão do campeão fluminense, divergimos em torno das mudanças estruturais no trânsito urbano, recordamos os tempos em que praticávamos a travessia fluvial entre Presidente Epitácio e Bataguassu, demorando horas na água indomável...

 

Assim o técnico despontou ao portão, quis dizer poucas e boas ao menino de dezoito anos, entretanto percebeu, ainda em tempo, que ele não tinha culpa da loja adquirir computadores de péssima qualidade, provavelmente vindos da China. Amistoso, um copo de Coca-Cola ao rapaz que, sentindo-se acolhido, desculpou-se pela demora, alegando serviço no outro lado da cidade e pequeno incidente durante o trajeto: a caixa traseira da moto abrira-se, ferramentas espalhadas na rua, ninguém ferido.

 

Quando entramos, meu amigo começou a ladainha. Suspenderia o pagamento, devolveria a aparelhagem e, se já tivesse dado entrada, exigiria o dinheiro de volta. Como confiar numa máquina, primeira vez já falhava? Caso de vida ou morte, como ficaria? Perdera praticamente a tarde inteira. Desejava ainda aproveitar o início da noite para indicar-me endereços de sites interessantes, longamente pesquisados.

 

Atencioso e cortês, o técnico desculpou-se novamente pela demora e prontificou-se a, se necessário, levar reclamações diretamente ao gerente do consumidor. Deu um volta, olhou os fios.

 

- Já achou o problema? Indagou meu amigo, incrédulo.

 

O técnico pegou o fio, introduziu na tomada de energia, acionou o botão do estabilizador, apertou o da CPU e, magicamente, o monitor se acendeu.

 

 

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 14 de setembro de 2012.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

MEMBROS DA COMISSÃO JULGADORA DO CONCURSO DE CRÔNICAS LAURA FERREIRA DO NASCIMENTO - 2012


ADAUTO ELIAS MOREIRA

Professor, matemático, romancista, cronista e contista. Ex-secretário municipal de Cultura da Estância Turística de Paraguaçu Paulista (SP), docente no ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior, lecionou na Faculdade de Paraguaçu Paulista e na Fundação Educacional do Município de Assis (FEMA). Ex-Delegado da Diretoria de Ensino de Paraguaçu Paulista. É autor do romance Os abismos de Caraguatá, laureado com o prêmio Lucilo Varejão do Conselho Municipal de Cultura de Recife/PE.

 

 

 

MARIA OTÍLIA FARTO PEREIRA

Graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP – ASSIS/SP), instituição de ensino por onde concluiu seu mestrado e seu doutorado em Letras, analisando linguisticamente a obra do escritor Monteiro Lobato. Professora dos ensinos fundamental, médio e superior. Revisora, parecerista de periódicos científicos. Publicou artigos científicos. É autora de Júlia e a parada do pen drive dourado (Arte & Ciência, 2012).

 

 

 

RONY FARTO PEREIRA

Graduado, especialista, mestre e doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP – ASSIS/SP), instituição de ensino superior onde lecionou por mais de trinta anos e pela qual se aposentou. Recebeu a Menção Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 2005 e 2009. Publicou quinze artigos científicos, dezesseis capítulos de livros e organizou ou escreveu sete livros, entre os quais destacam-se Recortes da cidade (Arte & Ciência, 1997) e Narrativas Juvenis: outros modos de ler (Anesp, 2008), este último, em parceria com o professor João L. C. T. Ceccantini. Revisor, parecerista de revistas científicas, crítico literário. Orientou onze mestrados, sete doutorados e vinte e sete especializações (pós-graduação lato sensu).

 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

ESTANTES

Por Vicentônio Silva


Desliguei soltando fogo pelas orelhas e louco para arrebentar, na cabeça do montador, o primeiro objeto que aparecesse em minha frente. Ainda bem que ele estava ao telefone, do outro lado da cidade onde chegáramos cinco dias antes depois de viagem interminável. Um colega de escritório indicou-me o profissional que, segundo ele, além de competente e confiável, oferecia os melhores preços. Melhores preços? Para montar cinco estantes, cinco prateleiras cada uma, cobrou cinqüenta reais. Cinqüenta reais não pelo conjunto do trabalho, mas por cada estante. Os duzentos e cinqüenta reais da montagem garantir-me-ão a aquisição de, pelo menos, três novas unidades.

Esposa e filhos entreolharam-se à hora do jantar quando, refletindo sobre a situação, incumbi-me da tarefa de montar os emaranhados de ferro. Prometi então que no sábado pela manhã, depois do expediente extra, chegaria em casa e, antes do almoço, uma delas estaria de pé. Minha esposa enigmática e silenciosamente fitou-me por alguns segundos.

Cheguei por volta das dez e meia, entrei na garagem, encontrei uma chave de fenda. Nada de chave de rosca que apertaria os parafusos. Homem criativo, cheio de idéias que resolviam os problemas a qualquer momento, improvisei alicate velho, espalhei as quatro pernas no chão da sala, peguei a primeira prateleira e, pacientemente, girando a porca no parafuso, atrelei os quatro suportes. Adicionei a segunda, depois a terceira. Já ganhava formas quando ajustei a quarta e a quinta. Apertei novamente todos os parafusos e, indo para frente, para trás, para um lado e para outro, nada abalaria sua força nem a levaria ao chão.

Almocei tranquilamente, filhos parabenizando-me pelo sucesso. Assisti ao telejornal, ao filme que alugamos na véspera e, antes das quatro e meia, espalhei novamente as pernas metálicas na sala, aplicando seguramente idênticos procedimentos. Organizei a segunda, a terceira e a quarta antes do jantar e, à hora do Jornal Nacional, dono da experiência e dos artifícios dos mestres dos trabalhos manuais, ergui a quinta e última comemorando com vinho branco, presente de meu primo trazido especialmente de viagem ao Chile.

Dormi bem e, dia seguinte, após o café da manhã e a leitura dos jornais, enfileirei as cinco armações de ferro uma ao lado da outra, evitando que minha mulher e meus filhos detectassem o pequeno problema delas: puxadas sem muita força, pendiam para frente ou para trás, dançavam de um lado para o outro. Arrumei a coleção de pratos de minha esposa – ela colecionava pratos importados desde os quinze anos. Já os tinha de Portugal, Espanha, Inglaterra, Japão, Noruega, Hungria. A Casa Real Dinamarquesa enviara-lhe peça datada do século passado. O transporte saiu dos bolsos do honorável povo nórdico, mas tivemos de desembolsar significativa quantia referente ao imposto de importação.

Abrimos a casa aos vizinhos e aos colegas de escritório. Refinado chá da tarde com variedades de biscoitos, patês, queijos e sucos. Minha esposa levava cada mulher que chegava aos pratos esteticamente dispostos ao lado esquerdo na sala de televisão, apontando, com grande deferência, o pertencente à história dinamarquesa, explicando o quanto sentira-se honrada com a distinção.

Quase nove da noite. A última dúzia de convidados arrumava-se para sair. Comentando com meu chefe a iniciativa de montar as estantes em razão do alto preço cobrado pelos profissionais locais, congratulou-me efusivamente, reforçando o orgulho de funcionário que jamais se curvava aos caprichos capitalistas nem fugia de trabalhos braçais. Sem cerimônias, atravessou a sala, elogiou novamente meu trabalho, já se preparava para sair. A esposa, acompanhada de minha mulher, perguntou o que olhava com tanto interesse.

- Você acredita que ele mesmo montou? Encostou-se na estante da ponta. Como eu tinha previsto, elas não caíram. Fiz um bom trabalho. Contudo, aquele probleminha (ir para frente e para trás, balançar de um a outro lado) levou todos os pratos – inclusive o real dinamarquês – ao chão.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 31 de agosto de 2012.

sábado, 25 de agosto de 2012

SERGIO BUARQUE DE HOLANDA


Por Vicentônio Silva


 

 

Geralmente desvalorizada e romanceada, a vida de professor sofre os percalços do cotidiano, especialmente quando, mantendo três empregos em universidades e aulas esporádicas em escolas de ensino médio, recebe propostas de apresentações acadêmicas para quais preparou-se pouco.

 

O episódio aconteceu durante a feira do livro de Adamantina. O organizador geral do evento convidara o professor – detentor do título de mestre em literatura brasileira contemporânea por prestigiada universidade de São Paulo – para discorrer sobre as principais contribuições de famoso escritor cujo aniversário – centenário? – comemorava-se. Aceitara desatentamente o convite numa balada, mas, na véspera do evento, deu-se conta de que não se lembrava do autor sobre quem falaria.

 

Manuseando o jornal, vislumbrou a foto do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, tema de abertura de festival no Rio de Janeiro. Já anotava tópicos num rascunho quando, lendo mais atenciosamente a reportagem, encontrou informações de que, naquele mesmo ano, o romancista baiano Jorge Amado e o cronista e dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues também constituíram temas de comemorações nos mais diversos lugares.

 

- E agora? Danou-se!

 

Pegou o computador portátil. Conferiu os e-mails, leu algumas notícias sobre as greves de professores nas universidades federais, verificou os índices de reajuste do aluguel – seu contrato venceria na semana seguinte – pesquisou detalhes das vidas e obras de Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Jorge Amado. Preparava-se a fixar as primeiras impressões. Apareceu, no canto esquerdo da tela, a informação de que a bateria precisaria ser trocada em três minutos ou o aparelho se desligaria. Correu à bolsa, retirou livros, dicionários, meias, canetas, pacotes de bolacha e, num relampejo, lembrou que deixara carregador, óculos de sol e creme de barbear em cima da cama. Sem se demorar, acomodou-se na pequena mesa do quarto de hotel, enumerou inicialmente as notas biográficas – de Drummond, Nelson e Jorge. Depois, cochilou quarenta minutos, acordou, sentou-se novamente e dedicou-se à parte mais difícil da empreitada: abordar teoricamente as contribuições das obras literárias e situar os escritores não apenas em seu tempo, mas avaliar quais obras permaneceram e qual sua importância no atual campo dos estudos literários.

 

Como nunca fora leitor de Jorge Amando – entretanto nunca perdia as adaptações de novelas, filmes e peças de teatro – deslizou a caneta até preencher frente e verso de três folhas. Apreciador de “A vida como ela é” e de boa parte do trabalho de dramaturgia, jamais analisara teoricamente Nelson Rodrigues, porém, sem grande esforço, preencheu sete laudas. Por fim, preocupado com a mão cansada e os olhos que insistiam em se enfadar, venceu o cansaço e de sua lavra as crônicas de Drummond – nunca entendeu bem a poesia – receberam observações pertinentes em quase uma dúzia de folhas às quais, após olhá-las com grande orgulho, exclamou: - Perfeitas! Originais! Irretocáveis! Deveria ganhar um Jabuti!

 

Na manhã seguinte, o motorista da universidade estacionou às sete e quarenta e cinco. Às oito horas e vinte e três minutos, entrava numa sala de professores convidados, sendo apresentado aos colegas como grande expressão das letras regionais e profundo conhecedor do homenageado. Cada nova apresentação, peito estufado, dentes arreganhados.

 

Pontualmente às nove horas, ele e dois debatedores enfileiraram-se atrás da cortina do teatro central. O diretor do curso anunciou inicialmente os dois debatedores menos famosos e, em seguida, entusiasmado e alternando o discurso com expressões de serenidade acadêmica e de apresentador de programa de televisão, convidou um dos maiores intelectuais do país.

 

Aplaudido efusivamente, sentou-se ao meio da mesa, arrumou os papéis e, enquanto deixava à mão os tópicos dos três escritores sobre os quais escrevera, sentiu um frio na barriga quando o diretor, enfatizando que jamais poderiam esquecer quem tanto contribuíra à cultura brasileira, convidou o distinto palestrante a discorrer profundamente sobre Sergio Buarque de Holanda.

 

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 24 de agosto de 2012.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

DESESPERO


Por Vicentônio Silva






O esposo saíra de casa dez minutos antes para se livrar da sogra e entregar a sobrinha quando ela, arrumando a cozinha e sonhando a aventura na viagem ao Xingu, ouviu estrondo, seguido de quedas de objetos, mesa e cadeira. O filho, jogado no chão, cadeira em cima dele. Afastou a mesa do computador – na hora do sufoco, sequer percebeu o monitor espatifado e que a impressora precisaria de substituta o quanto antes – ergueu-o desmaiado.



Deu um grito, sacudiu-o no ar, tentou levantar-se correndo para pegar o telefone, mas, na pressa, enrolou as pernas, tentou agarrar-se à parede, tomou um choque ao bater violentamente o cotovelo no concreto frio, caiu sentada. Levantou-se novamente, enxugou as lágrimas, verificou a respiração. Telefone: polícia, corpo de bombeiros, mãe ou marido?



As mãos tremiam a tal ponto que as teclas sensíveis do telefone digitavam o mesmo número seis ou oito vezes sucessivamente. Bastava discar o número nove do marido, o um dos bombeiros ou da polícia ou o primeiro da casa da mãe para que os números nove ou um surgissem seis ou oito vezes seguidas.



Abriu a geladeira, jarra de água ao chão. Copo de água do filtro. Jogou açúcar. Bebeu tremendo e, depois de mais uma verificação na respiração da criança, conseguiu se comunicar com o marido:



- Bem...



- Estou numa parada da polícia. Ligo depois, encerrou.



Pensou em buscar auxílio materno. O telefone escapou da mão, caiu em cima da mesa, quicou na cadeira e, mesmo agindo celeremente para evitar mais uma queda, abriu-se no chão. Pegou a telinha, encaixou o teclado, ajustou a bateria. Por que não ligava? Destrancou o portão da garagem. Rua vazia e pombos silenciosos brincando na árvore da casa vizinha angustiaram-na. Sem alternativas, frio de quase cinco graus, mal pensou em calçar sapato, colocar calças jeans, vestir blusa de frio, meter as mãos nas luvas ou agasalhar o menino quando o pegou, fechou a casa da maneira que deu e saiu a pé em busca de ajuda, telefone esquecido no sofá.



Cruzou a esquina, pegou a rua principal, dobrou a pracinha. Um taxi de cor vermelha vinha em sua direção. Segurou o filho em um só braço para acenar com o outro. Sem maiores atenções, o veículo virou dois quarteirões antes de alcançá-la. As lágrimas molharam os cabelos da criança que, ainda aquela manhã, participara da festa junina da escola, fantasiado de pai da noiva, forçando o noivo a assumir suas obrigações. Dera-lhe dois beijos antes de se perder na piscina de bolas coloridas, montada no pátio, especialmente para crianças com menos de cinco anos. Gritara euforicamente depois de recusar-se a abandonar as brincadeiras no último dia de aula.



Já avançava rumo ao parque quando o marido despontou numa rua secundária. Correu o quanto pode, parou diante do automóvel cujo motorista, surpreso e temeroso, acomodou o menino no banco traseiro. Na primeira curva, os olhos coloridos e os cabelos espalhados despertaram, mãozinha pousando sobre o ombro. Puxou o matreiro ao banco da frente. Por que dormira tanto? O desenho do Pica-pau já acabara? Ainda dava tempo de assistir “Carrossel”? Por que tanta fome? Por que estava sem Pandareco, o cavalo de madeira presenteado pelo avô no dia anterior?



Já na casa, a mãe narrava dramaticamente como abandonara a cozinha, entrara no quarto, afastara cadeira e mesa, colocara-o no sofá, tentara telefonar para o marido e o corpo de bombeiros, procurara desesperadamente algum vizinho e, sem alternativas, buscara socorro.



Poucos minutos depois, a prima apareceu e, mais uma vez, mesma ênfase e mesma emoção, contou a história de como quase perdera o filho, repetida à mãe, à irmã, à colega de trabalho, ao irmão, à vizinha que a vira despenteada e quase descalça, ao cunhado que aparecera para entregar encomenda da sogra... Certamente continuaria horas telefonando a Deus e ao mundo para compartilhar as fortes emoções quando o marido, estrondando numa risada, deliciou-se com a pergunta do filho, que acompanhava incredulamente o testemunho teatral da genitora.



- Pai, a mãe foi pra guerra?



*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 10 de agosto de 2012.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

ESCREVENDO PARA NÃO ADOECER


Por Vicentônio Silva






Organizando minha biblioteca depois de semana intensa de baterias de provas estafantes, reencontrei “Todo mundo devia escrever”, publicado pela Parábola Editorial, da lavra de Georges Picard. O título nos introduz ao mundo democrático da escrita e o subtítulo – “A escrita como disciplina de pensamento” – acaba nos indicando quais rumos adotar na jornada intempestiva da briga com as palavras. Quem escreve, ressalta Georges Picard, manipula a realidade de modo feliz ou infeliz e, ainda por cima, tenta se realizar, imprimindo as próprias marcas.



Ao lado dele, “Para gostar de escrever”, publicado pela Ática, parceria de Faraco e Moura, conhecidos autores de livros didáticos. Abordando pedagogicamente o domínio da linguagem, a narração, a descrição e a dissertação, Faraco e Moura ainda acrescentaram listas de exercícios complementares, dando ênfase aos modelos de redação de vestibulares e do ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio).



Se Georges Picard vislumbra a escrita como ato de liberdade e de responsabilidade, Faraco e Moura apresentam seus processos de criação e procedimentos de exteriorização. Já Roland Barthes, em “Aula”, estende a concepção de escritor a qualquer um que escreva: o ensaísta, o contista, o novelista, o autor de diários, de cartas, de peças publicitárias, de processos jurídicos, de explicações burocráticas, de receitas culinárias ou de aconselhamentos para matrimônios felizes...



As lembranças caíram sobre reportagem de alguns anos atrás quando um professor de biologia de importante universidade pública, em entrevista ao jornal local sobre o lançamento de seu primeiro romance, confessou que escrevia para controlar a ansiedade. Escrevendo, ficava mais leve, menos tenso.



Relembrando as declarações do professor, Picard e Barthes mantêm-se atuais à medida que um autor – não necessariamente forjado nas linhas de teoria literária – considera-se escritor pelo simples fato de se marcar no mundo através de suas palavras. Palavras que, nas suas declarações, surtiram efeito terapêutico não apenas para a constituição e amadurecimento de consciência, mas para o bem-estar. Considerando o bem-estar de quem escreve – e, sem dúvida, apegando-me a Barthes e Picard – poderia concluir que quem deseja se manter vivo precisa escrever.



Todos nós – sem exceção – passamos por momentos de angústia, de agonia, de desestímulo, de apreensão, de medo ou de impotência. Construímos um castelo de sonhos, de objetivos, de desejos e, aos poucos, de maneira cortante, sonhos, objetivos e desejos perdem-se antes da construção do castelo. Assim como as demais pessoas, somos carne, ossos e sentimentos. Limitados, peixes tentando sair da rede do pescador e brigando pela vida. Corajosos, temores e receios nos invadem à hora de dormir ou revoltam nossos estômagos ao acordar. Fortes, temos nossas fragilidades expostas quando massacrados pelo terror. Destemidos, desequilibramo-nos na caminhada, caímos, mas nos levantamos radiantes a procurar novos objetivos.



Escritores nascem casualmente. Machado de Assis – pobre, gago, enfrentando preconceitos – sofreu infância complicada antes de se tornar reconhecido e fundar a Academia Brasileira de Letras. Ao fim da vida, Clarice Lispector escrevia sob encomenda para garantir comida à mesa e jogou fora a privacidade, submetendo-se a entrevista que devassava sua intimidade. Lima Barreto enfrentou crises financeiras e psicológicas e, mesmo assim, consagrou-se um dos grandes de nossa literatura. Mario de Andrade – gênio do modernismo e brilhante intelectual – morreu pobre, isolado, esquecido.



Momentos de angústia, de agonia, de desestímulo, de apreensão, de medo ou de impotência? Nada de cachaça, nada de drogas, nada de cigarros, nada de se jogar da ponte. Quando o coração apertar, os sentidos falharem e os sentimentos anunciarem desespero incontrolável, pegue uma caneta ou um lápis, estenda sobre a mesa um pedaço de papel e escreva. Alguns desabafam bebendo, outros, cometendo besteiras. Se escrever/desabafar corriqueiramente, evitará infartos, derrames, aumento de diabetes ou de pressão... Escreva, não para ser melhor do que ninguém ou demonstrar a capacidade de reunir palavras. Escreva para não adoecer!





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 3 de agosto de 2012.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

DEONÍSIO DA SILVA: MESTRE DA REMEMORAÇÃO


Por Vicentônio Silva






Ligo o som, introduzo Mozart sem grande interesse – Ravel, Chopin e Wagner são mais interessantes. Vislumbro um homem de meia-idade andando na cozinha, conversando com um pássaro enjaulado, preparando o café da manhã. Entre olhares ao pássaro e o manuseio dos apetrechos domésticos, os devaneios percorrem os últimos anos quando, fugindo da Europa, mudou de nacionalidade e radicou-se no Brasil.





O leitor desavisado pode imaginar um perdulário que achou, em nosso país, o lugar ideal de falcatruas, entretanto se questionará sobre quem seria o homem maduro casado com a secretária com praticamente metade de sua idade, autor de livros que lhe deram notoriedade literária e reconhecimento internacional, cultivador de refinados hábitos, apreciador de Mozart e de Camões – de quem traduzira alguns versos ao alemão.





“Lotte & Zweig”, o mais recente livro de Deonísio da Silva publicado pela editora Leya, divide-se em duas partes. A parte inicial, narrada em primeira pessoa pelo escritor Stefan Zweig, judeu austríaco em fuga das forças nazistas que dominam a Europa, transcorre em sua casa em Petrópolis, onde, asilado, continua suas atividades de leitor e de escritor. Sua integração aos hábitos locais e a interação com os nativos se configuram nas relações íntimas nutridas com uma amante de cores, formas e costumes diferentes aos da esposa.





A ascensão nazista não apenas do outro lado do Atlântico, mas também em terras tupiniquins, os trabalhos efetuados (palestras, conferências e debates), as angústias matrimoniais, as ponderações envolvendo o presidente Getúlio Vargas, as amizades com diplomatas, intelectuais, empresários e professores são pensamentos que tomam conta do escritor – evitando acordar a parceira durante o preparo do café.





Os primeiros cinco capítulos da primeira parte são reflexões sobre sua situação individual de fugitivo, mas o sexto arremessa peso incalculável nas suas costas de modo que, numa espécie de choque por sua condição judaica, abre o coração, conta sua vida: formação acadêmica (graduara-se em letras e filosofia), a iniciação literária, a migração da poesia à prosa, os desígnios da morte, a frustração matrimonial – por elementos transcendentes às obrigações ou gracejos meramente conjugais, o convite de Strauss para compor o libreto de uma de suas obras.





Iniciada em terceira pessoa, a segunda parte do enredo concentra-se na captação dos esforços dos integrantes de um grupo nazista cuja missão consiste no extermínio do escritor, executado de tal maneira que os eventuais indícios de assassinato transformem-se em provas de suicídio. O manuseio das cenas e a construção dos diálogos revelam planejamento acurado para que, concluído o trabalho em solo brasileiro, o grupo desloque-se à Argentina em busca de nova vítima. Curiosidade: a única integrante comporta-se ambiguamente, reverenciando as propostas nazistas e, ao mesmo tempo, manifestando discutível senso humanitário na preservação da vida da companheira do escritor.





A segunda parte desperta o interesse não apenas por construir as imagens de crápulas calculando, debatendo, avançando, recuando, planejando, analisando e avaliando os resultados posteriores da ação, mas pelo número de evidências na condução do leitor a considerar a hipótese de assassinato – e não de suicídio, conforme a versão original. São vários os fatores que levantam suspeitas: o enterro obrigatório na Cidade Imperial, domicílio do casal, a falta de autópsia, a anuência de autoridades, entre elas o presidente da República, aos absurdos escancaradamente praticados no extermínio, a ineficiência da polícia, os personagens que tentam descobrir os significados dos fatos – como o auxiliar do delegado que gosta de ler ou do professor e ex-seminarista que fornece pistas importantes...





Deonísio da Silva elabora refinada, inteligente e fluente rememoração – lembrando, apenas, que rememoração não é o mesmo que rememorização – ao criar cenário de descobertas em que, tratando da intimidade e dos últimos momentos de colega de ofício, morto setenta anos atrás, conduz o leitor a refletir: onde termina a realidade e se inicia a ficção? Pergunta que fazemos sempre que, lendo bons romances, criamos dúvidas sobre a condição humana.







Lotte & Zweig

Deonísio da Silva – Leya – 128 p. – R$ 39,90





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de julho de 2012.