Por
Vicentônio Silva
Ligo
o som, introduzo Mozart sem grande interesse – Ravel, Chopin e Wagner são mais
interessantes. Vislumbro um homem de meia-idade andando na cozinha, conversando
com um pássaro enjaulado, preparando o café da manhã. Entre olhares ao pássaro
e o manuseio dos apetrechos domésticos, os devaneios percorrem os últimos anos
quando, fugindo da Europa, mudou de nacionalidade e radicou-se no Brasil.
O
leitor desavisado pode imaginar um perdulário que achou, em nosso país, o lugar
ideal de falcatruas, entretanto se questionará sobre quem seria o homem maduro
casado com a secretária com praticamente metade de sua idade, autor de livros
que lhe deram notoriedade literária e reconhecimento internacional, cultivador
de refinados hábitos, apreciador de Mozart e de Camões – de quem traduzira
alguns versos ao alemão.
“Lotte
& Zweig”, o mais recente livro de Deonísio da Silva publicado pela editora Leya,
divide-se em duas partes. A parte inicial, narrada em primeira pessoa pelo escritor
Stefan Zweig, judeu austríaco em fuga das forças nazistas que dominam a Europa,
transcorre em sua casa em Petrópolis, onde, asilado, continua suas atividades
de leitor e de escritor. Sua integração aos hábitos locais e a interação com os
nativos se configuram nas relações íntimas nutridas com uma amante de cores,
formas e costumes diferentes aos da esposa.
A
ascensão nazista não apenas do outro lado do Atlântico, mas também em terras
tupiniquins, os trabalhos efetuados (palestras, conferências e debates), as
angústias matrimoniais, as ponderações envolvendo o presidente Getúlio Vargas,
as amizades com diplomatas, intelectuais, empresários e professores são
pensamentos que tomam conta do escritor – evitando acordar a parceira durante o
preparo do café.
Os
primeiros cinco capítulos da primeira parte são reflexões sobre sua situação
individual de fugitivo, mas o sexto arremessa peso incalculável nas suas costas
de modo que, numa espécie de choque por sua condição judaica, abre o coração,
conta sua vida: formação acadêmica (graduara-se em letras e filosofia), a
iniciação literária, a migração da poesia à prosa, os desígnios da morte, a
frustração matrimonial – por elementos transcendentes às obrigações ou gracejos
meramente conjugais, o convite de Strauss para compor o libreto de uma de suas
obras.
Iniciada
em terceira pessoa, a segunda parte do enredo concentra-se na captação dos
esforços dos integrantes de um grupo nazista cuja missão consiste no extermínio
do escritor, executado de tal maneira que os eventuais indícios de assassinato
transformem-se em provas de suicídio. O manuseio das cenas e a construção dos
diálogos revelam planejamento acurado para que, concluído o trabalho em solo
brasileiro, o grupo desloque-se à Argentina em busca de nova vítima. Curiosidade:
a única integrante comporta-se ambiguamente, reverenciando as propostas
nazistas e, ao mesmo tempo, manifestando discutível senso humanitário na
preservação da vida da companheira do escritor.
A
segunda parte desperta o interesse não apenas por construir as imagens de crápulas
calculando, debatendo, avançando, recuando, planejando, analisando e avaliando
os resultados posteriores da ação, mas pelo número de evidências na condução do
leitor a considerar a hipótese de assassinato – e não de suicídio, conforme a
versão original. São vários os fatores que levantam suspeitas: o enterro obrigatório
na Cidade Imperial, domicílio do casal, a falta de autópsia, a anuência de
autoridades, entre elas o presidente da República, aos absurdos escancaradamente
praticados no extermínio, a ineficiência da polícia, os personagens que tentam
descobrir os significados dos fatos – como o auxiliar do delegado que gosta de
ler ou do professor e ex-seminarista que fornece pistas importantes...
Deonísio
da Silva elabora refinada, inteligente e fluente rememoração – lembrando,
apenas, que rememoração não é o mesmo que rememorização – ao criar cenário de
descobertas em que, tratando da intimidade e dos últimos momentos de colega de
ofício, morto setenta anos atrás, conduz o leitor a refletir: onde termina a
realidade e se inicia a ficção? Pergunta que fazemos sempre que, lendo bons
romances, criamos dúvidas sobre a condição humana.
Lotte & Zweig
Deonísio da Silva – Leya – 128 p. – R$ 39,90
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de julho de 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário