sexta-feira, 6 de julho de 2012

UM MESTRE, UMA VIDA

Por Vicentônio Silva

Otto Lara Resende surgiu-me nos lábios do protagonista de um filme. Proveniente de peça de Nelson Rodrigues, o personagem destacava reiteradamente a “genial frase do Otto”: “o mineiro só é solidário no câncer”. De lá para cá, li o escritor que integrava, juntamente com Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Helio Pelegrino, o quarteto a que denominaram Cavaleiros do Apocalipse. Diferentemente de Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino que construíram monumentos de gracejo, Otto Lara Resende inclui-se na categoria de cronista propenso menos ao literário do que ao jornalístico.

Se a memória não me falha, Moacyr Scliar sucedeu o colega na “Folha de São Paulo”, periódico de onde provém “Bom dia para nascer”, reunião das crônicas ali regularmente publicadas. Otto ocupava o quadro dos mais importantes escritores brasileiros quando, mais uma vez, recebeu o convite de escrever no jornal paulista. Aceito depois de várias tentativas, a coluna apareceu em primeiro de maio de 1991 quando o mineiro completava sessenta e nove anos.

O título da primeira crônica – “Bom dia para nascer” – abrange sentindo duplo. Em um primeiro momento, denotativo, transmite a idéia de que o dia do trabalho, feriado nacional, configurava a melhor ocasião para vir ao mundo. Numa leitura mais profunda, provocação implícita de que o mesmo dia do trabalho – feriado e comemoração para trabalhadores? – não corresponderia à sua finalidade como, cinqüenta anos antes, Mario de Andrade discutira em um de seus contos. Suas ponderações intercalavam assuntos diversos: calor, frio, verão, anjo da guarda, coletânea de entrevistas em que sobressaem escritores e obras importantes, bebidas, mulheres, voto, debate político, relações entre tele-novelas e obras literárias, criação de palavras ou atribuição de novos significados... Percorreu milhares de temas, centenas de assuntos, dezenas de fórmulas direcionadas a prender o leitor que, numa sentada de ônibus ou numa fila de banco, precisaria assimilar o conteúdo limitado a dois mil e duzentos toques dos quais o minimalista, conciso e objetivo escriba utilizava mil e oitocentos.

Em análise ao fim do livro, Humberto Werneck ressalta a inserção de Otto na segunda página numa tentativa de imprimir leveza e aplicar menos aridez a assuntos políticos, econômicos e sociais. Desconheço se a função de Otto consistia em criar situações hilárias – boa parte das crônicas sequer se aproxima de tal finalidade.

A liberdade obtida pela crônica – analisada, discutida e eventualmente praticada tanto nos cursos de Letras quanto nos de Jornalismo – abriu oportunidades amplas de manifestação desse gênero comumente praticado entre nós, brasileiros, de maneira que Afrânio Coutinho, ao tratar dela em um de seus livros, já discorria sobre suas espécies, destoando da proposta de Antônio Candido para quem a crônica sobreviveria a algumas horas. De acordo com Afrânio Coutinho, algumas crônicas resistem às horas, aos dias e ao tempo. Afrânio Coutinho apresentou um leque de variedades das crônicas, mas Antônio Candido, no caso do Otto de “Bom dia para nascer”, alcança a razão.

Otto captou as imagens, as preocupações e as alegrias do cotidiano, discutindo ironicamente posições econômicas, políticas, sociais e culturais. O olhar irônico sobre os fatos limita-se às situações de momento. Sem dúvida, seu livro – assim como boa parte das crônicas de Machado de Assis, por exemplo – é uma aula de escrever, de pensar, de refletir, de provocar, de confrontar, cujo valor se estenderá às áreas da História, da Sociologia e da Antropologia, ocupará lugar de destaque na historiografia literária brasileira e fomentará eventuais discussões acadêmicas nos cursos de jornalismo.

Jornalista, professor, crítico literário, leitor profissional ou iniciante, Otto Lara Resende constitui leitura essencial na configuração da crônica brasileira das últimas décadas, apontando dicas – diretas ou secundárias – de que a escrita transcende gêneros, teorizações e análises.


Bom dia para nascer
Otto Lara Resende – Companhia das Letras – 448 p. – R$ 49,00

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de julho de 2012.

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