Para
Alan Scott
Quando éramos
pequenos, meu primo Alan e eu morávamos na cidade mais interessante, empolgante
e marcante: Santa Rita. O município de mais ou menos cento e trinta mil
habitantes possuía vários bairros. Alan morava em Tibiri II; eu, Tibiri I. Dona
Isaura, nossa avó, mãe de meu pai e mãe da mãe dele, no Bairro Popular.
Encontrávamo-nos em
eventuais visitas ou à sua casa, ou à minha residência, mas ponto de encontro
mesmo era na casa de vó Isaura onde, depois de várias discussões e ajustes,
firmamos o acordo de que, ao crescermos, viraríamos fazendeiros. Peguei um
caderno de desenhos – sobrevivente das aulas de Educação Artística, perdido
entre remanescentes escolares – e, assim como Noé, lápis em punho e ouvidos
atentos, anotei os pares de animais que viveriam em nossos domínios.
Naquela época, as
conversas sobre o que teríamos ou não duravam da hora em que acordávamos até o
momento em que íamos dormir, interrompidas para assistir aos desenhos. Nada
sabíamos sobre administração rural, propriedade produtiva, lucros, prejuízos,
tributos, direitos trabalhistas de quem desejasse trabalhar sob nossas ordens,
percalços ambientais, mercados futuros, arregimentação de investidores...
Reunir um bando de animais configurava mais relevante objetivo.
Então, muito
pacientes, escrevíamos, reescrevíamos, elaborávamos, incluíamos e extirpávamos
nomes: vinte casais de coelhos, setenta casais de galinhas, setenta casais de
gansos, setenta casais de patos, setenta casais de guinés (ave a que, em alguns
lugares, dão o nome de galinha d’Angola), setenta casais de peixe (certamente
teríamos um rio ou, na melhor das hipóteses, um lago), trinta casais de
bovinos, dezesseis casais de ovelhas... Porcos? Claro! Porcos também são filhos
de Deus. Depois de algumas reflexões, achamos melhor um ou dois casais. Porcos
moram na lama. Já imaginávamos o trabalho que daria limpá-los e perfumá-los.
Nomes, espécies, quantidades e qualidades entravam e saíam corriqueiramente de
nossa lista, passada a limpo de meia em meia hora.
Chegou o momento em
que os animais escassearam e pensávamos em incrementar as atividades agrícolas
quando vó Isaura, ouvindo nossos ajustes comerciais, perguntou que fazenda era
aquela que não tinha plantação nenhuma. Só bicho?
Depois de engolir o
feijão, o arroz e o lombo que só dona Isaura sabe fazer, corríamos à sala e
iniciávamos o trabalho incansável, desta vez, conscientes de que precisávamos
saber dos nomes de frutas, legumes e verduras que seriam plantadas – com as
nossas ou as mãos alheias, assunto nunca discutido. Caneta deslizando no
caderno de desenho: tomate, alface, cenoura, cebola, batatinha inglesa, batata
doce, inhame, coentro, pimentão, feijão, arroz, macarrão, goiaba, manga,
abacaxi, abacate, laranja, limão, acerola... Quando nossas idéias de animais,
frutas, legumes e verduras acabaram, Alan indagou das árvores. Não éramos
necessariamente defensores do meio-ambiente, nada conhecíamos de
sustentabilidade ou sistema ecologicamente equilibrado, mas meu primo,
acompanhado de imediato por mim, desejava proteger nossos animais. Árvores
frondosas, sombras imensas. Se não gostávamos de tostar ao Sol, por que nossa
criação gostaria?
Os tempos voaram, as
transformações da juventude surtiram efeitos, mudamos de casa e de cidade,
distanciamo-nos por quase três mil quilômetros. Meu primo casou – nunca
conversamos sobre isso, mas acredito que queira ser pai, praticou artes
marciais, alçou-se a importante jogador de basquete, instalou-se em João
Pessoa, cursa faculdade e esforça-se no trabalho que, pelo que vejo, o leva a
São Luis, São Paulo, Mossoró e tantos outros locais formidáveis.
Lembrando de sua
cidade, Drummond – tão festejado em seu centenário – afirmava que Itabira (MG)
era só um retrato na parede, um retrato que doía o coração.
Nunca entendi de animais
ou de plantação, mas hoje, puxando essas lembranças das gavetas da memória,
nossa imagem (Alan e eu sentados ao chão da sala de TV da casa de vó Isaura,
elaborando e discutindo os objetivos de nossa fazenda) “é apenas uma fotografia
na parede. / Mas como dói!”
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de julho de 2012.
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