sexta-feira, 31 de agosto de 2012

ESTANTES

Por Vicentônio Silva


Desliguei soltando fogo pelas orelhas e louco para arrebentar, na cabeça do montador, o primeiro objeto que aparecesse em minha frente. Ainda bem que ele estava ao telefone, do outro lado da cidade onde chegáramos cinco dias antes depois de viagem interminável. Um colega de escritório indicou-me o profissional que, segundo ele, além de competente e confiável, oferecia os melhores preços. Melhores preços? Para montar cinco estantes, cinco prateleiras cada uma, cobrou cinqüenta reais. Cinqüenta reais não pelo conjunto do trabalho, mas por cada estante. Os duzentos e cinqüenta reais da montagem garantir-me-ão a aquisição de, pelo menos, três novas unidades.

Esposa e filhos entreolharam-se à hora do jantar quando, refletindo sobre a situação, incumbi-me da tarefa de montar os emaranhados de ferro. Prometi então que no sábado pela manhã, depois do expediente extra, chegaria em casa e, antes do almoço, uma delas estaria de pé. Minha esposa enigmática e silenciosamente fitou-me por alguns segundos.

Cheguei por volta das dez e meia, entrei na garagem, encontrei uma chave de fenda. Nada de chave de rosca que apertaria os parafusos. Homem criativo, cheio de idéias que resolviam os problemas a qualquer momento, improvisei alicate velho, espalhei as quatro pernas no chão da sala, peguei a primeira prateleira e, pacientemente, girando a porca no parafuso, atrelei os quatro suportes. Adicionei a segunda, depois a terceira. Já ganhava formas quando ajustei a quarta e a quinta. Apertei novamente todos os parafusos e, indo para frente, para trás, para um lado e para outro, nada abalaria sua força nem a levaria ao chão.

Almocei tranquilamente, filhos parabenizando-me pelo sucesso. Assisti ao telejornal, ao filme que alugamos na véspera e, antes das quatro e meia, espalhei novamente as pernas metálicas na sala, aplicando seguramente idênticos procedimentos. Organizei a segunda, a terceira e a quarta antes do jantar e, à hora do Jornal Nacional, dono da experiência e dos artifícios dos mestres dos trabalhos manuais, ergui a quinta e última comemorando com vinho branco, presente de meu primo trazido especialmente de viagem ao Chile.

Dormi bem e, dia seguinte, após o café da manhã e a leitura dos jornais, enfileirei as cinco armações de ferro uma ao lado da outra, evitando que minha mulher e meus filhos detectassem o pequeno problema delas: puxadas sem muita força, pendiam para frente ou para trás, dançavam de um lado para o outro. Arrumei a coleção de pratos de minha esposa – ela colecionava pratos importados desde os quinze anos. Já os tinha de Portugal, Espanha, Inglaterra, Japão, Noruega, Hungria. A Casa Real Dinamarquesa enviara-lhe peça datada do século passado. O transporte saiu dos bolsos do honorável povo nórdico, mas tivemos de desembolsar significativa quantia referente ao imposto de importação.

Abrimos a casa aos vizinhos e aos colegas de escritório. Refinado chá da tarde com variedades de biscoitos, patês, queijos e sucos. Minha esposa levava cada mulher que chegava aos pratos esteticamente dispostos ao lado esquerdo na sala de televisão, apontando, com grande deferência, o pertencente à história dinamarquesa, explicando o quanto sentira-se honrada com a distinção.

Quase nove da noite. A última dúzia de convidados arrumava-se para sair. Comentando com meu chefe a iniciativa de montar as estantes em razão do alto preço cobrado pelos profissionais locais, congratulou-me efusivamente, reforçando o orgulho de funcionário que jamais se curvava aos caprichos capitalistas nem fugia de trabalhos braçais. Sem cerimônias, atravessou a sala, elogiou novamente meu trabalho, já se preparava para sair. A esposa, acompanhada de minha mulher, perguntou o que olhava com tanto interesse.

- Você acredita que ele mesmo montou? Encostou-se na estante da ponta. Como eu tinha previsto, elas não caíram. Fiz um bom trabalho. Contudo, aquele probleminha (ir para frente e para trás, balançar de um a outro lado) levou todos os pratos – inclusive o real dinamarquês – ao chão.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 31 de agosto de 2012.

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