sábado, 25 de agosto de 2012

SERGIO BUARQUE DE HOLANDA


Por Vicentônio Silva


 

 

Geralmente desvalorizada e romanceada, a vida de professor sofre os percalços do cotidiano, especialmente quando, mantendo três empregos em universidades e aulas esporádicas em escolas de ensino médio, recebe propostas de apresentações acadêmicas para quais preparou-se pouco.

 

O episódio aconteceu durante a feira do livro de Adamantina. O organizador geral do evento convidara o professor – detentor do título de mestre em literatura brasileira contemporânea por prestigiada universidade de São Paulo – para discorrer sobre as principais contribuições de famoso escritor cujo aniversário – centenário? – comemorava-se. Aceitara desatentamente o convite numa balada, mas, na véspera do evento, deu-se conta de que não se lembrava do autor sobre quem falaria.

 

Manuseando o jornal, vislumbrou a foto do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, tema de abertura de festival no Rio de Janeiro. Já anotava tópicos num rascunho quando, lendo mais atenciosamente a reportagem, encontrou informações de que, naquele mesmo ano, o romancista baiano Jorge Amado e o cronista e dramaturgo pernambucano Nelson Rodrigues também constituíram temas de comemorações nos mais diversos lugares.

 

- E agora? Danou-se!

 

Pegou o computador portátil. Conferiu os e-mails, leu algumas notícias sobre as greves de professores nas universidades federais, verificou os índices de reajuste do aluguel – seu contrato venceria na semana seguinte – pesquisou detalhes das vidas e obras de Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e Jorge Amado. Preparava-se a fixar as primeiras impressões. Apareceu, no canto esquerdo da tela, a informação de que a bateria precisaria ser trocada em três minutos ou o aparelho se desligaria. Correu à bolsa, retirou livros, dicionários, meias, canetas, pacotes de bolacha e, num relampejo, lembrou que deixara carregador, óculos de sol e creme de barbear em cima da cama. Sem se demorar, acomodou-se na pequena mesa do quarto de hotel, enumerou inicialmente as notas biográficas – de Drummond, Nelson e Jorge. Depois, cochilou quarenta minutos, acordou, sentou-se novamente e dedicou-se à parte mais difícil da empreitada: abordar teoricamente as contribuições das obras literárias e situar os escritores não apenas em seu tempo, mas avaliar quais obras permaneceram e qual sua importância no atual campo dos estudos literários.

 

Como nunca fora leitor de Jorge Amando – entretanto nunca perdia as adaptações de novelas, filmes e peças de teatro – deslizou a caneta até preencher frente e verso de três folhas. Apreciador de “A vida como ela é” e de boa parte do trabalho de dramaturgia, jamais analisara teoricamente Nelson Rodrigues, porém, sem grande esforço, preencheu sete laudas. Por fim, preocupado com a mão cansada e os olhos que insistiam em se enfadar, venceu o cansaço e de sua lavra as crônicas de Drummond – nunca entendeu bem a poesia – receberam observações pertinentes em quase uma dúzia de folhas às quais, após olhá-las com grande orgulho, exclamou: - Perfeitas! Originais! Irretocáveis! Deveria ganhar um Jabuti!

 

Na manhã seguinte, o motorista da universidade estacionou às sete e quarenta e cinco. Às oito horas e vinte e três minutos, entrava numa sala de professores convidados, sendo apresentado aos colegas como grande expressão das letras regionais e profundo conhecedor do homenageado. Cada nova apresentação, peito estufado, dentes arreganhados.

 

Pontualmente às nove horas, ele e dois debatedores enfileiraram-se atrás da cortina do teatro central. O diretor do curso anunciou inicialmente os dois debatedores menos famosos e, em seguida, entusiasmado e alternando o discurso com expressões de serenidade acadêmica e de apresentador de programa de televisão, convidou um dos maiores intelectuais do país.

 

Aplaudido efusivamente, sentou-se ao meio da mesa, arrumou os papéis e, enquanto deixava à mão os tópicos dos três escritores sobre os quais escrevera, sentiu um frio na barriga quando o diretor, enfatizando que jamais poderiam esquecer quem tanto contribuíra à cultura brasileira, convidou o distinto palestrante a discorrer profundamente sobre Sergio Buarque de Holanda.

 

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 24 de agosto de 2012.

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