Por
Vicentônio Silva
Geralmente
desvalorizada e romanceada, a vida de professor sofre os percalços do
cotidiano, especialmente quando, mantendo três empregos em universidades e
aulas esporádicas em escolas de ensino médio, recebe propostas de apresentações
acadêmicas para quais preparou-se pouco.
O
episódio aconteceu durante a feira do livro de Adamantina. O organizador geral
do evento convidara o professor – detentor do título de mestre em literatura
brasileira contemporânea por prestigiada universidade de São Paulo – para
discorrer sobre as principais contribuições de famoso escritor cujo aniversário
– centenário? – comemorava-se. Aceitara desatentamente o convite numa balada, mas,
na véspera do evento, deu-se conta de que não se lembrava do autor sobre quem
falaria.
Manuseando
o jornal, vislumbrou a foto do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, tema
de abertura de festival no Rio de Janeiro. Já anotava tópicos num rascunho
quando, lendo mais atenciosamente a reportagem, encontrou informações de que,
naquele mesmo ano, o romancista baiano Jorge Amado e o cronista e dramaturgo
pernambucano Nelson Rodrigues também constituíram temas de comemorações nos
mais diversos lugares.
-
E agora? Danou-se!
Pegou
o computador portátil. Conferiu os e-mails, leu algumas notícias sobre as
greves de professores nas universidades federais, verificou os índices de
reajuste do aluguel – seu contrato venceria na semana seguinte – pesquisou
detalhes das vidas e obras de Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e
Jorge Amado. Preparava-se a fixar as primeiras impressões. Apareceu, no canto
esquerdo da tela, a informação de que a bateria precisaria ser trocada em três
minutos ou o aparelho se desligaria. Correu à bolsa, retirou livros,
dicionários, meias, canetas, pacotes de bolacha e, num relampejo, lembrou que
deixara carregador, óculos de sol e creme de barbear em cima da cama. Sem se
demorar, acomodou-se na pequena mesa do quarto de hotel, enumerou inicialmente
as notas biográficas – de Drummond, Nelson e Jorge. Depois, cochilou quarenta
minutos, acordou, sentou-se novamente e dedicou-se à parte mais difícil da
empreitada: abordar teoricamente as contribuições das obras literárias e situar
os escritores não apenas em seu tempo, mas avaliar quais obras permaneceram e
qual sua importância no atual campo dos estudos literários.
Como
nunca fora leitor de Jorge Amando – entretanto nunca perdia as adaptações de
novelas, filmes e peças de teatro – deslizou a caneta até preencher frente e
verso de três folhas. Apreciador de “A vida como ela é” e de boa parte do
trabalho de dramaturgia, jamais analisara teoricamente Nelson Rodrigues, porém,
sem grande esforço, preencheu sete laudas. Por fim, preocupado com a mão
cansada e os olhos que insistiam em se enfadar, venceu o cansaço e de sua lavra
as crônicas de Drummond – nunca entendeu bem a poesia – receberam observações
pertinentes em quase uma dúzia de folhas às quais, após olhá-las com grande
orgulho, exclamou: - Perfeitas! Originais! Irretocáveis! Deveria ganhar um
Jabuti!
Na
manhã seguinte, o motorista da universidade estacionou às sete e quarenta e
cinco. Às oito horas e vinte e três minutos, entrava numa sala de professores
convidados, sendo apresentado aos colegas como grande expressão das letras
regionais e profundo conhecedor do homenageado. Cada nova apresentação, peito
estufado, dentes arreganhados.
Pontualmente
às nove horas, ele e dois debatedores enfileiraram-se atrás da cortina do
teatro central. O diretor do curso anunciou inicialmente os dois debatedores
menos famosos e, em seguida, entusiasmado e alternando o discurso com
expressões de serenidade acadêmica e de apresentador de programa de televisão, convidou
um dos maiores intelectuais do país.
Aplaudido
efusivamente, sentou-se ao meio da mesa, arrumou os papéis e, enquanto deixava
à mão os tópicos dos três escritores sobre os quais escrevera, sentiu um frio
na barriga quando o diretor, enfatizando que jamais poderiam esquecer quem
tanto contribuíra à cultura brasileira, convidou o distinto palestrante a
discorrer profundamente sobre Sergio Buarque de Holanda.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 24 de agosto de 2012.
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