sexta-feira, 27 de julho de 2012

DEONÍSIO DA SILVA: MESTRE DA REMEMORAÇÃO


Por Vicentônio Silva






Ligo o som, introduzo Mozart sem grande interesse – Ravel, Chopin e Wagner são mais interessantes. Vislumbro um homem de meia-idade andando na cozinha, conversando com um pássaro enjaulado, preparando o café da manhã. Entre olhares ao pássaro e o manuseio dos apetrechos domésticos, os devaneios percorrem os últimos anos quando, fugindo da Europa, mudou de nacionalidade e radicou-se no Brasil.





O leitor desavisado pode imaginar um perdulário que achou, em nosso país, o lugar ideal de falcatruas, entretanto se questionará sobre quem seria o homem maduro casado com a secretária com praticamente metade de sua idade, autor de livros que lhe deram notoriedade literária e reconhecimento internacional, cultivador de refinados hábitos, apreciador de Mozart e de Camões – de quem traduzira alguns versos ao alemão.





“Lotte & Zweig”, o mais recente livro de Deonísio da Silva publicado pela editora Leya, divide-se em duas partes. A parte inicial, narrada em primeira pessoa pelo escritor Stefan Zweig, judeu austríaco em fuga das forças nazistas que dominam a Europa, transcorre em sua casa em Petrópolis, onde, asilado, continua suas atividades de leitor e de escritor. Sua integração aos hábitos locais e a interação com os nativos se configuram nas relações íntimas nutridas com uma amante de cores, formas e costumes diferentes aos da esposa.





A ascensão nazista não apenas do outro lado do Atlântico, mas também em terras tupiniquins, os trabalhos efetuados (palestras, conferências e debates), as angústias matrimoniais, as ponderações envolvendo o presidente Getúlio Vargas, as amizades com diplomatas, intelectuais, empresários e professores são pensamentos que tomam conta do escritor – evitando acordar a parceira durante o preparo do café.





Os primeiros cinco capítulos da primeira parte são reflexões sobre sua situação individual de fugitivo, mas o sexto arremessa peso incalculável nas suas costas de modo que, numa espécie de choque por sua condição judaica, abre o coração, conta sua vida: formação acadêmica (graduara-se em letras e filosofia), a iniciação literária, a migração da poesia à prosa, os desígnios da morte, a frustração matrimonial – por elementos transcendentes às obrigações ou gracejos meramente conjugais, o convite de Strauss para compor o libreto de uma de suas obras.





Iniciada em terceira pessoa, a segunda parte do enredo concentra-se na captação dos esforços dos integrantes de um grupo nazista cuja missão consiste no extermínio do escritor, executado de tal maneira que os eventuais indícios de assassinato transformem-se em provas de suicídio. O manuseio das cenas e a construção dos diálogos revelam planejamento acurado para que, concluído o trabalho em solo brasileiro, o grupo desloque-se à Argentina em busca de nova vítima. Curiosidade: a única integrante comporta-se ambiguamente, reverenciando as propostas nazistas e, ao mesmo tempo, manifestando discutível senso humanitário na preservação da vida da companheira do escritor.





A segunda parte desperta o interesse não apenas por construir as imagens de crápulas calculando, debatendo, avançando, recuando, planejando, analisando e avaliando os resultados posteriores da ação, mas pelo número de evidências na condução do leitor a considerar a hipótese de assassinato – e não de suicídio, conforme a versão original. São vários os fatores que levantam suspeitas: o enterro obrigatório na Cidade Imperial, domicílio do casal, a falta de autópsia, a anuência de autoridades, entre elas o presidente da República, aos absurdos escancaradamente praticados no extermínio, a ineficiência da polícia, os personagens que tentam descobrir os significados dos fatos – como o auxiliar do delegado que gosta de ler ou do professor e ex-seminarista que fornece pistas importantes...





Deonísio da Silva elabora refinada, inteligente e fluente rememoração – lembrando, apenas, que rememoração não é o mesmo que rememorização – ao criar cenário de descobertas em que, tratando da intimidade e dos últimos momentos de colega de ofício, morto setenta anos atrás, conduz o leitor a refletir: onde termina a realidade e se inicia a ficção? Pergunta que fazemos sempre que, lendo bons romances, criamos dúvidas sobre a condição humana.







Lotte & Zweig

Deonísio da Silva – Leya – 128 p. – R$ 39,90





*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de julho de 2012.


sexta-feira, 20 de julho de 2012

FAZENDA


Para Alan Scott



Quando éramos pequenos, meu primo Alan e eu morávamos na cidade mais interessante, empolgante e marcante: Santa Rita. O município de mais ou menos cento e trinta mil habitantes possuía vários bairros. Alan morava em Tibiri II; eu, Tibiri I. Dona Isaura, nossa avó, mãe de meu pai e mãe da mãe dele, no Bairro Popular.



Encontrávamo-nos em eventuais visitas ou à sua casa, ou à minha residência, mas ponto de encontro mesmo era na casa de vó Isaura onde, depois de várias discussões e ajustes, firmamos o acordo de que, ao crescermos, viraríamos fazendeiros. Peguei um caderno de desenhos – sobrevivente das aulas de Educação Artística, perdido entre remanescentes escolares – e, assim como Noé, lápis em punho e ouvidos atentos, anotei os pares de animais que viveriam em nossos domínios.



Naquela época, as conversas sobre o que teríamos ou não duravam da hora em que acordávamos até o momento em que íamos dormir, interrompidas para assistir aos desenhos. Nada sabíamos sobre administração rural, propriedade produtiva, lucros, prejuízos, tributos, direitos trabalhistas de quem desejasse trabalhar sob nossas ordens, percalços ambientais, mercados futuros, arregimentação de investidores... Reunir um bando de animais configurava mais relevante objetivo.



Então, muito pacientes, escrevíamos, reescrevíamos, elaborávamos, incluíamos e extirpávamos nomes: vinte casais de coelhos, setenta casais de galinhas, setenta casais de gansos, setenta casais de patos, setenta casais de guinés (ave a que, em alguns lugares, dão o nome de galinha d’Angola), setenta casais de peixe (certamente teríamos um rio ou, na melhor das hipóteses, um lago), trinta casais de bovinos, dezesseis casais de ovelhas... Porcos? Claro! Porcos também são filhos de Deus. Depois de algumas reflexões, achamos melhor um ou dois casais. Porcos moram na lama. Já imaginávamos o trabalho que daria limpá-los e perfumá-los. Nomes, espécies, quantidades e qualidades entravam e saíam corriqueiramente de nossa lista, passada a limpo de meia em meia hora.



Chegou o momento em que os animais escassearam e pensávamos em incrementar as atividades agrícolas quando vó Isaura, ouvindo nossos ajustes comerciais, perguntou que fazenda era aquela que não tinha plantação nenhuma. Só bicho?



Depois de engolir o feijão, o arroz e o lombo que só dona Isaura sabe fazer, corríamos à sala e iniciávamos o trabalho incansável, desta vez, conscientes de que precisávamos saber dos nomes de frutas, legumes e verduras que seriam plantadas – com as nossas ou as mãos alheias, assunto nunca discutido. Caneta deslizando no caderno de desenho: tomate, alface, cenoura, cebola, batatinha inglesa, batata doce, inhame, coentro, pimentão, feijão, arroz, macarrão, goiaba, manga, abacaxi, abacate, laranja, limão, acerola... Quando nossas idéias de animais, frutas, legumes e verduras acabaram, Alan indagou das árvores. Não éramos necessariamente defensores do meio-ambiente, nada conhecíamos de sustentabilidade ou sistema ecologicamente equilibrado, mas meu primo, acompanhado de imediato por mim, desejava proteger nossos animais. Árvores frondosas, sombras imensas. Se não gostávamos de tostar ao Sol, por que nossa criação gostaria?



Os tempos voaram, as transformações da juventude surtiram efeitos, mudamos de casa e de cidade, distanciamo-nos por quase três mil quilômetros. Meu primo casou – nunca conversamos sobre isso, mas acredito que queira ser pai, praticou artes marciais, alçou-se a importante jogador de basquete, instalou-se em João Pessoa, cursa faculdade e esforça-se no trabalho que, pelo que vejo, o leva a São Luis, São Paulo, Mossoró e tantos outros locais formidáveis.



Lembrando de sua cidade, Drummond – tão festejado em seu centenário – afirmava que Itabira (MG) era só um retrato na parede, um retrato que doía o coração.



Nunca entendi de animais ou de plantação, mas hoje, puxando essas lembranças das gavetas da memória, nossa imagem (Alan e eu sentados ao chão da sala de TV da casa de vó Isaura, elaborando e discutindo os objetivos de nossa fazenda) “é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!”



*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de julho de 2012.

domingo, 15 de julho de 2012

RESULTADO PARCIAL


Encerrados os prazos de inscrição, a Comissão Organizadora da segunda edição do Concurso de Crônicas Laura Ferreira do Nascimento procedeu à análise das inscrições. Foram recebidas 153 inscrições:





EXTERIOR

PAÍSES
NÚMERO DE INSCRIÇÕES
ESTADOS UNIDOS
1
ALEMANHA
1





ESTADOS BRASILEIROS

ESTADOS
NÚMERO DE INSCRIÇÕES
São Paulo
Entre as cidades da região de Maracaí inscritas: Maracaí (20); Assis (01); Regente Feijó (01); Martinópolis (01); Bauru (01); Teodoro Sampaio (01); outros (43)
68
Rio de Janeiro
20
Minas Gerais
16
Paraná
11
Rio Grande do Sul
9
Pernambuco
7
Brasília/DF
6
Santa Catarina
3
Bahia
2
Espírito Santo
2
Goiás
2
Maranhão
1
Pará
1
Paraíba
1
Sergipe
1
Tocantins
1



Apesar de o edital da abertura de inscrições para o Concurso de Crônicas Laura Ferreira do Nascimento ter sido postado no blog do evento em 27 de dezembro do ano passado, 51 (cinqüenta e um) concorrentes não o leram ou ignoraram as instruções. Dessa maneira, esses 51 (cinqüenta e um) concorrentes foram desclassificados por não atenderem aos requisitos contidos expressamente nos artigos 8º, 10, 11 e 12.



Conforme dispunha o art. 10, parágrafo primeiro, as inscrições deveriam chegar até 6 de julho, respeitando-se, para tal finalidade, o carimbo dos correios com a postagem realizada até 28 de junho. As correspondências que chegaram com carimbo posterior a 28 de junho foram sumariamente descartadas.



Os jurados terão aproximadamente 50 (cinquenta) dias para lerem as crônicas e escolherem cinco delas dando-lhes notas inteiras e resguardando a possibilidade de, em não serem de boa qualidade, registrar a nomenclatura SEM CLASSIFICAÇÃO.

Em inícios de Setembro, a identidade e a qualificação dos jurados constarão do blog do Concurso de Crônicas Laura Ferreira do Nascimento. Em 22 de setembro, as crônicas escolhidas e as notas atribuídas também constarão do blog, mas, em nenhum momento, os jurados serão atrelados às notas preservando-se, dessa maneira, o anonimato e a independência dos integrantes da Comissão Julgadora.

Por fim, vale lembrar que o Concurso de Crônicas Laura Ferreira do Nascimento não dividiu os concorrentes por categorias. Sendo assim, adolescentes, jovens, adultos e pessoas da Melhor Idade, escritores iniciantes ou experientes, titulados academicamente ou sem diploma de curso superior, monoglota ou no domínio de vários idiomas, da cidade ou do campo, homens ou mulheres concorrem em condições de igualdade.



Boa sorte aos concorrentes!



Comissão Organizadora.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

QUEBRANDO A ROTINA

Por Vicentônio Silva


A idéia de quebrar a rotina surgiu ao fim da tarde de sábado, após o sono do almoço e antes do café com pão de queijo, quando a esposa, segurando revista semanal de fofocas, propôs a quebra da rotina: reavivar o fogo do amor do casamento de doze anos. O marido leu as páginas separadas por clipes e os fragmentos evidenciados por marcadores de texto, arqueou as sobrancelhas, sorriu discretamente, devolveu a revista à esposa que, ao pegá-la, atacou:

- E daí? Vamos quebrar a rotina?

O marido bocejou, espreguiçou-se, bateu compassadamente os dedos sobre a perna direita:

- Quebrar a rotina?

- Vamos começar hoje mesmo! Dispôs as xícaras, retirou a forma quente repleta de pães de queijo. – Arrumaremos um programaço para esta noite. Sentou-se euforicamente, abriu o pão de queijo e soprou ao meio para esfriá-lo.

A visível falta de interesse do marido passou longe de seus cuidados de modo que, sem atentar-se ao detalhe, continuou o monólogo:

- Barzinho? Restaurante? Boate ou danceteria? Nada de pizzaria. Muito menos churrascaria ou choperia. Detalhe: só você e eu! Sem filhos, sem pais, sem mães, sem amigos, sem intrometidos.

O marido comia o terceiro pão de queijo e secava o café, provavelmente pensando no resultado do jogo de futebol da tarde seguinte, campeonato disputado pelo time do bairro.

- Vestido novo, sandálias novas, perfume discreto. Cabelos e unhas? O salão deve estar lotado. Quase cinco e meia. Mas, do vestido, das sandálias e do perfume eu não abro mão.

Largou o marido, os pães de queijo e o café, entrou no carro, parou no estacionamento do shopping, simpatizou com a primeira sapataria que apareceu, porém, quase uma hora depois de azucrinar as atendentes e revirar os modelos da vitrine, ainda mostrava-se insatisfeita com as opções. Agradeceu rapidamente pelo atendimento e sentou-se no primeiro banco da sapataria concorrente. Os atendentes gastaram quase meia hora e irritavam-se indiscretamente com as solicitações reiteradas. Desciam caixas, subiam caixas, explicavam modelos, sugeriam combinações, alardeavam a qualidade, a durabilidade e o design do produto. Terceira sapataria, problemas idênticos. Na sexta loja, sandálias de salto número 16.

Faltavam apenas o vestido e o perfume. Como sabia que o marido, nos tempos de namoro, sempre gostara de fragrância suave, comprou vidrinho discreto. Bastava um pingo nos pulsos e outro atrás do pescoço ou das orelhas.

Vestido vermelho, ombros à vista e um palmo acima do joelho. Dentro do provador, os quilinhos acumulados na ausência à ginástica e à natação surpreenderam de maneira que a atendente, sem saber adequadamente o que fazer e temendo represálias da gerente caso perdesse a cliente, expôs vestidos maiores e mais coloridos.

Passava das vinte e duas horas – horário de fechamento do shopping e, consequentemente, das lojas – quando a mulher finalmente escolheu vestido cor de pele. Chegou ao carro com as sacolas, mas não conseguiu encontrar as chaves. Espalhou o conteúdo da bolsa no chão, verificou item por item. Subiu as escadarias: portas das sapatarias fechadas e sem funcionários. Procurou a gerência, sem sucesso. Quando decidiu voltar ao estacionamento, a porta de acesso fechada mostrou-lhe a cilada em que caíra. Imaginou a possibilidade de se socorrer do marido. Ele saberia o que fazer. O telefone? Dentro do carro.

Procurou telefone público, entretanto a companhia mandara retirar todos os aparelhos do estabelecimento. A falta de interesse de utilizá-los e a popularização do celular encareciam a manutenção. Se jogasse algo contra uma vitrine, alguém certamente apareceria acompanhado da polícia, imagens do incidente na internet.

Andou de um lado para outro por duas horas até sentar-se exausta no sofá. Quase uma hora da manhã. Pulou, sobressaltada: o marido, acompanhado de dois vigilantes e o gerente geral, a acordava.

- Realmente, disse o esposo, acenando ao vigilante, cumprimentando o gerente e manobrando levemente o automóvel no estacionamento vazio, você sabe como quebrar a rotina.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de julho de 2012.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

UM MESTRE, UMA VIDA

Por Vicentônio Silva

Otto Lara Resende surgiu-me nos lábios do protagonista de um filme. Proveniente de peça de Nelson Rodrigues, o personagem destacava reiteradamente a “genial frase do Otto”: “o mineiro só é solidário no câncer”. De lá para cá, li o escritor que integrava, juntamente com Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Helio Pelegrino, o quarteto a que denominaram Cavaleiros do Apocalipse. Diferentemente de Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino que construíram monumentos de gracejo, Otto Lara Resende inclui-se na categoria de cronista propenso menos ao literário do que ao jornalístico.

Se a memória não me falha, Moacyr Scliar sucedeu o colega na “Folha de São Paulo”, periódico de onde provém “Bom dia para nascer”, reunião das crônicas ali regularmente publicadas. Otto ocupava o quadro dos mais importantes escritores brasileiros quando, mais uma vez, recebeu o convite de escrever no jornal paulista. Aceito depois de várias tentativas, a coluna apareceu em primeiro de maio de 1991 quando o mineiro completava sessenta e nove anos.

O título da primeira crônica – “Bom dia para nascer” – abrange sentindo duplo. Em um primeiro momento, denotativo, transmite a idéia de que o dia do trabalho, feriado nacional, configurava a melhor ocasião para vir ao mundo. Numa leitura mais profunda, provocação implícita de que o mesmo dia do trabalho – feriado e comemoração para trabalhadores? – não corresponderia à sua finalidade como, cinqüenta anos antes, Mario de Andrade discutira em um de seus contos. Suas ponderações intercalavam assuntos diversos: calor, frio, verão, anjo da guarda, coletânea de entrevistas em que sobressaem escritores e obras importantes, bebidas, mulheres, voto, debate político, relações entre tele-novelas e obras literárias, criação de palavras ou atribuição de novos significados... Percorreu milhares de temas, centenas de assuntos, dezenas de fórmulas direcionadas a prender o leitor que, numa sentada de ônibus ou numa fila de banco, precisaria assimilar o conteúdo limitado a dois mil e duzentos toques dos quais o minimalista, conciso e objetivo escriba utilizava mil e oitocentos.

Em análise ao fim do livro, Humberto Werneck ressalta a inserção de Otto na segunda página numa tentativa de imprimir leveza e aplicar menos aridez a assuntos políticos, econômicos e sociais. Desconheço se a função de Otto consistia em criar situações hilárias – boa parte das crônicas sequer se aproxima de tal finalidade.

A liberdade obtida pela crônica – analisada, discutida e eventualmente praticada tanto nos cursos de Letras quanto nos de Jornalismo – abriu oportunidades amplas de manifestação desse gênero comumente praticado entre nós, brasileiros, de maneira que Afrânio Coutinho, ao tratar dela em um de seus livros, já discorria sobre suas espécies, destoando da proposta de Antônio Candido para quem a crônica sobreviveria a algumas horas. De acordo com Afrânio Coutinho, algumas crônicas resistem às horas, aos dias e ao tempo. Afrânio Coutinho apresentou um leque de variedades das crônicas, mas Antônio Candido, no caso do Otto de “Bom dia para nascer”, alcança a razão.

Otto captou as imagens, as preocupações e as alegrias do cotidiano, discutindo ironicamente posições econômicas, políticas, sociais e culturais. O olhar irônico sobre os fatos limita-se às situações de momento. Sem dúvida, seu livro – assim como boa parte das crônicas de Machado de Assis, por exemplo – é uma aula de escrever, de pensar, de refletir, de provocar, de confrontar, cujo valor se estenderá às áreas da História, da Sociologia e da Antropologia, ocupará lugar de destaque na historiografia literária brasileira e fomentará eventuais discussões acadêmicas nos cursos de jornalismo.

Jornalista, professor, crítico literário, leitor profissional ou iniciante, Otto Lara Resende constitui leitura essencial na configuração da crônica brasileira das últimas décadas, apontando dicas – diretas ou secundárias – de que a escrita transcende gêneros, teorizações e análises.


Bom dia para nascer
Otto Lara Resende – Companhia das Letras – 448 p. – R$ 49,00

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 6 de julho de 2012.