sexta-feira, 23 de março de 2012

GÊNIO EUGÊNIO


Por Vicentônio Silva


O nome viera da convicção paterna: assim que começasse a encadear as primeiras frases, tornar-se-ia motivo de inveja, de admiração e de reverência. Nos esportes, genialidade desmentida pelos problemas de articulação, de condicionamento físico e de percepção. Ensaiou frustrantes atuações no futebol, vôlei, basquete, natação, pólo aquático, hipismo, corridas de moto e de carro, dama, xadrez, tênis, ping-pong, patinação, ciclismo, musculação, ginástica, hóquei e rúgbi.

Na escola, mal conseguia concentrar-se numa crônica de Paulo Mendes Campos, Rony Farto Pereira, Ferreira Gullar, Sergio Porto ou Fernando Sabino; nas fórmulas elementares de matemática, química e física; nas informações entrecortadas de biologia; nos rios, mares, climas e capitais de geografia; nas datas, momentos e personagens importantes da história; nas regras gramaticais, poesias parnasianas, escolas literárias; nos nomes dos pintores e compositores clássicos de Educação Artística.

No mundo empresarial, dispersavam-se as informações entre prazos de execução de nota promissória e cheque, diferenças da duplicata, vantagens da compra por atacado e por varejo, benefícios de vender a juros compostos e prazos a perder de vista aos consumidores de confiança, poupar, gastar menos do que se ganha, divulgar apelativamente nos meios de comunicação.

Chegou a entrar num curso de culinária. No primeiro prato, servido aos familiares num tradicional almoço de domingo, as crianças devolveram a comida mal a tinham colocado na boca. Entrou nos vinhos a fim de indicar e aprovar as melhores safras. Duas semanas consecutivas de estardalhaços, quase fechou o restaurante do amigo do pai.

Eugênio não se vestia mal, malhava na academia do quarteirão de sua casa, acordava cedo, dentes brilhantes e cabelos bem tratados. Sempre cheiroso. Numa última tentativa de salvar a famigerada genialidade, o pai descobriu o dom de conquistar, envolver e desajuizar mulheres.

- É isso que vais fazer, disse, orgulhoso, dando orientações da abordagem. Primeiro, no calçadão. Depois, nos shoppings. Em seguida, nas faculdades. Então, lançaria mão de artifícios mais arrojados como supermercados, feiras livres, quermesses, encontros religiosos, enterros e procissões. Por fim, a abordagem nos ônibus lotados e nas filas de banco.

O gênio passeava pelo calçadão quando encontrou uma Flor do Campo de pouco mais de vinte anos que morava em Martinópolis. Conversaram, trocaram e-mails e telefones, voltaram a se falar, firmaram compromisso e o namoro seguia às sextas, sábados e domingos.

Os seis primeiros meses mereciam presente de comemoração. Incentivado e instigado pelo pai, saiu novamente ao calçadão onde, sem muito esforço, voltou a se engraçar com um Lírio com quem, mais uma vez, trocou e-mails e telefones, convidou para tomar sorvete e passou a namorar às terças e quartas, depois do pôr-do-sol e antes do nascer do dia.

A vida parecia-lhe boa: fim de semana, Martinópolis, Flor do Campo; dias úteis, Lírio de Presidente Prudente. Duas coelhas com uma só cajadada, falava para si mesmo, cônscio de que a genialidade, prevista pelo pai, finalmente dava-lhe bons frutos.

A Flor do Campo de Martinópolis telefonou inesperadamente no fim da tarde de quinta-feira, perguntando se poderia visitá-la naquela noite a fim de opinar sobre assuntos delicados que estavam tirando o sono. Muito solícito, Eugênio – cuja folga das duas se dava na segunda e na quinta – surgiu às vinte horas e dezessete minutos. Sempre chegava atrasado aos compromissos. Entrou radiante na sala da Flor do Campo de Martinópolis que, vestindo bermuda velha e camisa das eleições passadas, pegou a pizza, abriu largo sorriso, colocou a comida sobre a mesa, amarrou o cabelo em rabo de cavalo:

- Que bom que chegou! Minha amiga e eu estávamos esperando para discutir um assunto que muito nos interessa. Talvez você já a conheça, mas não deve tê-la visto.

Eugênio virou-se: sentada numa cadeira de mogno, pernas cruzadas, o Lírio de Presidente Prudente segurava um taco de baseball.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de março de 2012.

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