Por
Vicentônio Silva
Carregava
caixas durante a mudança de um amigo quando, tropeçando no tapete, caí sobre o
sofá e espalhei os álbuns. A mãe de meu amigo socorreu-me. Enquanto ensaiava
maneiras de colocá-los de volta à caixa, indaguei o motivo de tantos álbuns.
Tratava-se de mais ou menos cento e trinta anos da história da família que
chegara de outro país. Estabelecera-se inicialmente em São Paulo , depois partiu
ao Paraná, permaneceu alguns anos no Rio Grande do Sul até que, por motivos
quaisquer de desentendimentos entre vizinhos – provavelmente o filho de um
quisera seqüestrar a esposa ou a filha do outro – resolveu mudar-se ao interior
de São Paulo onde, desde então, cultiva terras e negocia gados. Anos mais tarde
transferiu-se para Presidente Prudente, Presidente Epitácio e Araçatuba.
Quando
colocávamos o último álbum na caixa, um retrato pousou sobre o tapete. A imagem
inquietara-me: fotografia em preto e branco, bom estado de conservação,
trazendo um senhor de idade avançada, duas mulheres, três homens e uma criança
aparentando dez anos. A imagem me inquietara porque todos – enfatizo, todos –
os modelos estavam carecas.
Curiosíssimo
com a situação, perguntei quem eram aquelas pessoas. Jamais tinha visto aquela
foto – ou pouco reparara na inusitada situação de pessoas carecas sendo
fotografadas. Prometeu-me que, assim que colocasse as coisas em ordem na nova
casa, mataria minha curiosidade e, como maneira de honrar a palavra, deixou-me o
retrato.
Passaram-se
quase dois meses quando me telefonou num fim de tarde informando da chegada de
parentes de Araçatuba. Apareci no almoço de domingo. A foto, passando de mão em
mão, nada significava aos olhos atentos.
Sem
sucesso, recorremos, antes de os parentes de Araçatuba retornarem às áridas
terras do norte paulista, a alguns familiares de Presidente Prudente nas casas
de quem tivemos boa guarida, mas nenhuma informação. Presidente Epitácio:
última tentativa. Marcamos viagem para o fim de semana na intenção de conversar
com tios septuagenários.
O
primeiro tio misturava histórias, confundia datas, trocava nomes de pessoas e
de lugares. O segundo e o terceiro deram-nos boa quantidade de chá – que povo
para gostar de chá! – entretanto nada esclareceram. Muito atencioso, o quarto
tio riu-se excessivamente até que as lágrimas despencaram e a sugestão de
epidemia de piolho tomasse forma. Faminto e irritado, pronto para dispensar
qualquer informação do quinto tio, na verdade, tia.
Assim
como os irmãos, dona Madalena encheu-nos de chá. Estiquei-lhe a foto. Tomou-se
de silêncio, os olhos umedeceram, um vento leve de rio entrou pela janela
sacudindo os cristais pendurados. Um dos adultos tinha sido seu namorado.
Sem
saber se me desculpava por lhe trazer lembrança dolorosa, se continuava em
silêncio ou se saía sem dizer palavra, explicou que o menino, sobrinho do
namorado e neto do velho, recebera o diagnóstico de câncer. Opção de tratamento
químico, ainda em teste. Com
o tempo, os cabelos do menino cairiam. O avô – sabia as operações matemáticas
elementares para manter seus negócios – sugeriu a careca. Evitaria
constrangimentos maiores ao menino e dores à nora. O menino aceitou, mas, na
hora do corte, imaginou-se motivo de chacota.
O
pai e a mãe argumentaram, a tia tentou persuadi-lo, o namorado da tia usou de
seus artifícios de vendedor. O menino manteve-se inalterável. O avô – dono de
praticidade invejável – fez sinal para que levantasse e pediu corte total.
Assim que se levantou, o pai do menino também aderiu à tesoura e à lâmina,
seguido da esposa que, para surpresa de todos, dispensou os quase cinqüenta
centímetros de cabelos ruivos. Esperando sua vez, um amigo da família saiu de
cabeça lisa. A tia tomou o lugar e o namorado, menos por solidariedade do que
por amor, igualmente livrou-se dos cabelos crespos. Para lembrar-se do episódio,
a foto.
Rubem
Alves nos ensina que muitas vezes não é preciso dizer nada, mas apenas fazer.
Educação é assim: não é preciso explicar, argumentar ou convencer. Muitas vezes
é preciso simplesmente fazer.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 30 de março de 2012.
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