Por
Vicentônio Silva
Para
dona Isaura
Mal
entramos na cozinha e ela sentou-se na cadeira mais próxima ao fogão e à
geladeira, esticando os olhos sobre os recipientes de feijão, arroz, macarrão e
as travessas de salada, frango grelhado, carne de porco, fraldinha, lasanha,
escondidinho de carne seca, farofa, lingüiça e bons pedaços de picanha. Os
pratos aguardavam no meio de garfos e facas, atrás de dois copos – um de
refrigerante ou vinho e o outro de água – e em cima de pequeno artefato
comprado no mercado de artesanato de João Pessoa. O cheiro da comida bailava no
ar e, até mesmo eu, que continuava sério ouvindo os comentários da dona da casa
sobre os novos e barulhentos vizinhos, já me angustiava pela demora do marido
que, sem que nem para que, inventara de tomar banho.
Conversei
sobre as plantas do quintal, algumas delas trazidas de viagens ao Mato Grosso e
ao Tocantins, discorri sobre as novas taxas de juros aplicadas à poupança,
defendi o controle de ajuste fiscal pelo qual a Europa se esbofeteava, lembrei
de alguns filmes passados na Espanha e na Inglaterra, comentei sobre o
lançamento de concursos públicos federais cujos salários e tarefas, afirmavam
os professores nos preparatórios, estavam nos sonhos de cinco em cada seis
brasileiros, enalteci os fins medicinais de remédios produzidos em laboratórios
de entidades sem fins lucrativos... Meu repertório – e minha paciência –
chegava ao fim quando ela disparou sem cerimônia:
-
Como é? Seu marido sai ou não sai desse banho? Talvez seja melhor a senhora
verificar se ele não se afogou ou se não foi sugado pelo ralo.
Recriminei
minha parceira pelas palavras indevidas enquanto a dona da casa entrava pelo
corredor, subia os dois lances de escadas sem corrimão. Quase vinte minutos de
banho e o anfitrião não se atentava de que esperávamos ansiosamente pela
oportunidade de engolir o almoço?
Mais
alguns minutos, a dona da casa apareceu sorridente, informando que o marido já
saíra do banho e escolhia calças confortáveis que combinassem com a tarde
refrescante, vento balançando as folhas do pé de jambo e entrando pelas janelas.
-
Talvez fosse melhor a gente começar a comer e, quando seu marido chegar, disse
minha parceira, ele entra no bonde em movimento. Antes tarde do que nunca.
Mal
terminou de falar, escorregou a salada da travessa para seu prato, colocou o
prato no centro da mesa, pegou a travessa para se servir, já colocou, nos
primeiros movimentos, cinco colheres de arroz, quatro garfadas de macarrão,
duas conchas de feijão e metade da salada que ocupava o prato inicialmente destinado
a ela.
-
Seu marido é um homem muito ocupado, fino, elegante, enfim, cheio das
etiquetas, mas esperá-lo pode nos atrasar e, consequentemente, nos gerar
embaraço nos compromissos da tarde. Se me permite, começarei a almoçar sem ele
e, se não se movimentarem, sem vocês também. Meu médico receitou-me alimentação
balanceada, mas acredito que não precisaria de recomendações, pois desde
criança tenho um fastio danado e, agora, com oitenta e dois anos, continuo sem
vontade de comer nada. Como apenas para me manter viva. Caso contrário, comida
nunca me faria falta.
Jogou
na travessa – que fazia as vezes de prato – cinco pedaços de frango grelhado,
metade da lasanha, um terço do escondidinho de carne, cinco colheres de farofa,
oito lingüiças e três medalhões de picanha. Obviamente feijão, arroz, macarrão
e salada antecederam os demais itens da farta dieta e causaram tamanha
admiração na anfitriã que a fizeram pensar em voz alta sobre a conveniência de
cozinhar complementos.
-
Não precisa complementar mais nada, disse minha parceira. Já estou satisfeita,
entretanto, frutas, Coca-Cola e água bem geladinha me fariam muito bem. Levantou-se
abruptamente, abriu a geladeira como se tivesse intimidade de longos anos,
buscou duas bananas, um mamão e cinco laranjas na fruteira, sentou-se novamente
e não esperou mais ninguém.
Constrangida
e inquieta, a dona da casa convidou-me a sentar. Comemos bastante, falamos de
amenidades e, quando o marido chegou, recipientes e travessas praticamente
vazias ocupavam a mesa.
-
A comida estava deliciosa. Convide-me sempre que quiser. Beijos. Minha parceira
saiu delicadamente, roubando duas trufas.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 15 de junho de 2012.
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