Por Vicentônio Silva
Se algo o encantava, as cidades históricas. Já visitara a parte antiga de João Pessoa, Recife, Salvador, São Luis. Deliciara-se quase um mês caminhando pelas ruas de Ouro Preto, Mariana, Congonhas, pela conservada e quase cinematográfica Tiradentes de onde partiu, muito nostálgico, rumo a novos desafios, mas em Paraty, no Rio de Janeiro, recebeu a proposta: o broche de Tiradentes.
Senta-se à mesa de bar – todos sentam-se à mesa de bar – e, comenta os jogos do fim de semana, arrasta o olho para mulher de pele bronzeada e cabelos pretos compridos, palpita sobre a pontuação da sinuca, vislumbra desinteressadamente as bebidas disponíveis quando, depois de copos misturados, discorre didaticamente sobre seus passeios às cidades históricas.
- Pois, disse o homem de quarenta anos, barba por fazer, boné vermelho, provavelmente torcedor do Flamengo, se o senhor realmente gostar de cidades históricas e objetos históricos, tenho algo de que vai se encantar. Obviamente custará bagatela simbólica.
Sem acrescentar maiores informações sobre o produto, o homem de quarenta anos retirou uma flanela do bolso, enrolado na qual um broche aparentemente banhado de brilhos e respingos de coloração amarela. Ainda zonzo com os copos de bebidas misturadas, a visão turva e as vozes entrando alternada e entrecortadamente aos ouvidos cansados, o interlocutor nada entendeu.
- Sabe a quem pertenceu este broche? Consegue imaginar? Estava na gola da camisa de Tiradentes quando o enforcaram em Minas Gerais. Se souber um pouco de História lembrar-se-á (reforçou as palavras na mesóclise) que o manda-chuva da época mandou desfilar o corpo do herói pelas Minas Gerais e, em seguida, exibiu-o na Estrada Real, um percurso que atravessa todo o estado e chega ao Rio de Janeiro. A comitiva estacionou em Paraty e, naquela época, meu tatataravô conseguiu, durante o descanso da comitiva, arrancar o broche da gola da camisa.
O dono do broche verificava o efeito do discurso provocado no viajante cujos olhos, quase mortos e perturbados, interessavam-se pela narrativa. Segurando o broche depositado na flanela, mostrou a peça sem permitir exame mais detalhado.
- Passou de geração em geração em minha família. Estamos com ela há mais de quatrocentos anos e, como o senhor pode imaginar, seu valor sentimental é infinitamente maior do que o financeiro. Se desejo transmiti-la ao senhor, mais por compreender seu espírito desbravador e amante da História do que por necessidade. Por essa razão, faço-lhe, como disse desde o início, um preço simbólico, modesto. Que tal vinte mil reais?
Os olhos arregalaram-se diante do valor manifestado.
- Meu amigo, começou o viajante, em nenhum momento discordo do valor financeiro, histórico e sentimental do broche de Tiradentes, entretanto vinte mil reais estão além de minhas possibilidades.
Vendedor e comprador já negociavam há mais de duas horas quando os primeiros raios de Sol puseram fim às tratativas e os levaram aos bancos mais próximos para efetuar a transferência de oito mil e quinhentos reais, preço final ajustado a que o comprador prontificou-se a honrar, puxando as sobras de poupanças. Retirando o dinheiro de um banco de estado, um banco comercial e um banco de economia mista, o comprador juntou apenas oito mil reais. Sem meias palavras e sem demora, o vendedor esbanjou compreensão, conferiu o dinheiro, entregou o broche cuidadosamente enrolado na flanela, despediu-se com grande cordialidade, desejando sorte ao novo proprietário da relíquia histórica.
Cansado pela noite em claro, jogou-se na cama e adormeceu assim que entrou no apartamento. Acordou depois das três da tarde quando a esposa, saindo do banho, jogou guinchos de água de lavanda sobre ele. Abriu um sorriso, sentou-se:
- Você imaginou, começou ele, se tivesse a sorte de encontrar alguém que vendesse um broche de Tiradentes, retirado da roupa do herói da inconfidência mineira quando o corpo dele passou por Paraty? Jóia transmitida de geração em geração há mais de quatrocentos anos?
- Eu desmascararia o charlatão, respondeu a esposa. Primeiro, os broches não eram adornos de sub-oficiais das forças imperiais e chegou ao Brasil apenas em 1808. Segundo, Tiradentes morreu em 1792. O broche jamais teria quatrocentos anos, mas, no máximo, duzentos e vinte. Terceiro, o corpo de Tiradentes nunca foi exibido em Paraty, pois, naquela época, eles tomaram outra rota e desceram diretamente ao Rio de Janeiro.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 29 de junho de 2012.