sexta-feira, 20 de abril de 2012

HIPÓTESE


Por Vicentônio Silva





O melhor lugar para desaprender – ou pelo menos questionar algum conceito – é na faculdade e, dependendo da faculdade, você sairá graduado em crítica ou experto em cretinice. Chegava ao meio de um infindável livro quando as explicações de duas estudantes de agronomia me interromperam. Discorriam sobre os procedimentos de plantações. Uma delas, a mais falante, incentivava a aprendizagem de regra de três composta com a finalidade de identificar a quantidade de graus Celsius necessária à germinação da semente. Se no frio, algumas culturas não prosperariam; se no calor, condenadas ao fracasso.

A produção de conhecimento desenvolvia-se satisfatoriamente quando, mais uma vez, a voz elevou-se: a segunda estudante perguntava o significado da palavra “hipotético” disposta no enunciado da questão. A primeira estudante impostou a voz e declarou não se lembrar claramente da resposta do professor, entretanto sabia que hipotético era algo “surreal”, “do outro mundo”, “tipo assim uma coisa sobrenatural”. Segurei-me ao máximo, ajeitei-me na cadeira, respirei fundo, levantei rapidamente, entrei no banheiro e fechei a porta antes de estourar numa risada. Não entendo nada de língua, lingüística, linguagem, significante, significado ou comunicação, contudo tinha convicção: hipótese não era algo “surreal”, nem “do outro mundo”, muito menos algo “tipo assim uma coisa sobrenatural”.

Recomposto, voltei à cadeira, peguei o livro, pus meus olhos ao trabalho árduo de continuar sua monótona leitura, anotei alguns dados numas folhas de papel que uso como rascunho, enumerei displicentemente atividades do dia posterior (banco, supermercado, casa lotérica...). Por mais que me esforçasse o “surreal”, algo “do outro mundo” e “tipo assim uma coisa sobrenatural” voltavam-me com grande estrondo e, mais uma vez, o riso explodiu. Seriamente descobrindo os resultados decorrentes das fórmulas aplicadas, as meninas desconheciam o motivo de meus ataques de bom humor.

Levantei-me novamente, tranquei-me no banheiro, lavei as faces e tomei a decisão: buscaria o significado de “hipótese” no dicionário. A bibliotecária de óculos pesados e voz baixa – modulada pelo silêncio constante do ambiente, geralmente cheio de freqüentadores às vésperas de prova ou de trabalhos coletivos – perguntou-me que espécie de dicionário gostaria de usar e, quando disse que me entregasse o mais completo de língua portuguesa, dispôs-me antiga edição do Aurélio, publicada em meados dos anos 80 em papel-bíblia.

Uma das qualidades das bibliotecas de algumas faculdades? A convicção de que seus alunos e, principalmente, seus professores, jamais recorrerão aos seus serviços. Prova disso é que o dicionário Aurélio, único exemplar disponível, estava inteiramente empoeirado, páginas quase coladas e casas de aranha nas duas extremidades. Alguém ressaltará que alunos universitários, pela suposta carga de conhecimento adquirido, nunca precisarão pesquisar em um singelo dicionário de língua portuguesa, mas, como sou burro, aceito minhas limitações e me ponho a procurar informações com quem aparentemente sabe melhor do que eu.

Entre outras definições literárias, filosóficas e científicas, os sinônimos da palavra procurada definiam “hipótese” como caso, eventualidade, suposição ou acontecimento incerto. Consequentemente imaginei que “hipotético” não é algo “surreal” (algo fora do comum), nem “do outro mundo”, muito menos algo “tipo assim uma coisa sobrenatural”, mas um caso eventual ou suposto. Se Bertrand entra num bom emprego de salário milionário, existe a hipótese de que ele adquira carro mais confortável, mude de casa, compre mais roupas, viaje com a família nas férias para lugares encantadores... Em outras palavras, Bertrand – eventual ou supostamente – poderá comprar carro ou roupas, mudar de casa ou viajar com a família, mas não necessária e obrigatoriamente colocará em prática tais atividades, pois são “hipóteses” daquilo que poderá fazer.

Essa experiência ensinou-me algo valioso: mais valem noites dedicadas aos bares, boates, cartas, sinucas e baladas do que gastar quatro ou cinco anos em bancos universitários que “hipoteticamente” são receptores de conhecimento.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 20 de abril de 2012.

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