Por
Vicentônio Silva
A
conversa rolava desde o subsolo, mas no terceiro andar tomou fôlego quando a
assistente social, salto alto e caixa pesada, ouviu os argumentos da advogada
descolada, do arquiteto frustrado, da arquiteta observadora, do publicitário
vazio e do contador arrasado – estes dois desceriam no vigésimo terceiro, consultório
do endocrinologista; o publicitário, consulta, o contador, imposto de renda.
-
Eu vejo, sim. Enfatizava a advogada descolada. – Vejo páginas de internet de
conteúdo adulto. Qual o problema? Estamos na segunda década do Século XXI. Temos
Constituição democrática que, vinte e quatro anos atrás, estabeleceu relações
de igualdade entre homens e mulheres. Sou independente, malho todos os dias, pago
minhas contas, dei sorte de nascer num país em que a liberdade é assegurada a
todos.
-
Acho um absurdo, interrompeu o contador arrasado. Essas páginas de conteúdo
adulto são destinadas exclusivamente aos homens. Mulheres que usam a internet
para tais fins, não sei, não... Que tipo de mulher é essa?
-
Uma mulher que não tem vergonha na cara, declarou a assistente social,
segurando a caixa com muita dificuldade. – Se soubesse de alguma funcionária
que entrasse nessas páginas, certamente solicitaria o desligamento da empresa. Mulher
de bem não se dá ao desfrute de páginas de conteúdo adulto. Onde já se viu uma
coisa dessas?
-
Viu? Não estou sozinho. Ela também concorda comigo, retomou o contador, constatando
o décimo sexto andar.
-
Sinceramente, o publicitário manifestava-se, eu não vejo o menor problema. A
advogada já disse tudo: somos um país de liberdade. Homens e mulheres têm
direitos iguais. Se os homens podem acessar páginas de conteúdo adulto, as
mulheres também possuem idêntico direito.
-
Vejo todos os problemas, manifestou-se o arquiteto frustrado. Essas mulheres
não têm liberdade, mas libertinagem. Perderam a vergonha na cara desde o
momento em que decidiram largar o fogão, o tanque de roupa e os serviços
domésticos. Estão roubando nossos lugares no mercado de trabalho. Mulher minha
fica em casa. Obedecendo minhas ordens.
-
Concordo em partes com o senhor, disse a assistente social. Quem não consegue
trabalho digno, a melhor ocupação é ficar em casa. Eu mesma, enfatizou,
dedico-me ao trabalho dez horas por dia. Quando chego, faço jantar. Sou
tradicional. Mulher para mim tem que se dar o respeito. Nada de entrar na
internet em busca de página de conteúdo adulto. O mundo está perdido. O que
vamos deixar para os nossos filhos?
O
elevador estacionou no vigésimo segundo andar. A assistente social concluiu
suas perspectivas sobre o tema. Antes de sair, o salto enroscou na pequena
saliência deixada pelo elevador, torceu o pé e a caixa que carregava abriu-se
violentamente no chão, espalhando coleções completas de Private, G Magazine,
Brasileirinhas...
-
Para os “nossos” filhos eu não sei que mundo deixar, ironizou a advogada
descolada, mas para “seus” filhos, revistas de conteúdo adulto certamente não
faltarão.
As
portas do elevador encerraram as risadas. O contador e o publicitário desceram
no vigésimo terceiro. Antes de se despedir, o publicitário trocou cartões com a
advogada, sugerindo um vinho no apartamento dele para discorrerem mais sobre o
assunto.
O
elevador retomou seu trajeto ininterruptamente até o trigésimo quarto andar
onde o arquiteto frustrado, a arquiteta observadora e a advogada descolada
mantinham seus escritórios. A arquiteta pediu que a incluísse no vinho caso o
encontro com o publicitário desse certo. A advogada descolada virou para o
arquiteto: não gostaria de se encontrar com eles qualquer tarde dessas? O profissional
de formas, estéticas e cores: - Não me misturo com pessoas desse tipo.
A
advogada descolada advertiu que sempre existiria tempo para mudar de idéia.
Sentou-se na sua cadeira e, vinte minutos depois, a secretária informou que o
arquiteto do escritório vizinho desejaria conversar com ela.
-
Sempre existe tempo para mudar de idéia? Será que posso levar minha esposa
nessa tarde de vinhos também?
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 13 de abril de 2012.
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