Por Vicentônio Silva
Duas boas notícias, divulgadas nos últimos meses, quebraram meu cotidiano e me coagiram a testemunhar a beleza da poesia que, de vez em quando, parece entrar na rotina das burocracias e me obriga a reverenciar algumas atitudes. As duas boas – na verdade, ousaria imputar-lhes os adjetivos excelentes, extraordinárias e fantásticas – notícias são relacionadas ao título de Patrono do Teatro Brasileiro, concedido ao ator Paulo Autran, e ao de Patrono da Educação Brasileira, conferido ao educador Paulo Freire.
Paulo Autran e Paulo Freire são praticamente contemporâneos, entretanto desconheço se tiveram afinidades, se um chegou a acompanhar e a entender profundamente o trabalho do outro, se possuíam interesses estranhos aos seus campos de atuação, se compartilhavam ideologias e visões políticas... Ambos ensaiaram vitoriosas tentativas de comunicação universal. A única maneira de se manter a comunicação universal é, logicamente, valendo-se de linguagem universal. Autran e Freire então recorreram àquela mais nobre linguagem: a Arte.
Autran ensaiou seus passos pelos palcos mundo afora, atuou em algumas novelas e, com o tempo, aperfeiçoou a qualidade cênica, apresentando e reencenando peças que saíam da pena de escritores consagrados e de dramaturgos que davam os primeiros respiros. Freire esqueceu o diploma de bacharel em direito em alguma de suas gavetas ou estantes, abriu mão do dinheiro que indiscutivelmente ganharia nas insolúveis e ineficientes controvérsias jurídicas para se dedicar a atividade menos rentável, menos reconhecida, mais encrencada: educação.
Paulo e Paulo resgataram as melhores qualidades da nação brasileira e, cortando daqui, elaborando dali, produzindo constantemente e refletindo sem parar, deram um toque de graça que os levou aos prêmios mundiais. Se juntássemos tanto os prêmios de reconhecimento de um quanto os títulos de enaltecimento de outro, precisaríamos de dezenas de colunas apenas para enumerá-los sem nada comentar, sem contextualizar as façanhas e sem discutir os graus de relevância.
Faculdades de letras não produzem poetas, as de artes não lançam artistas e as de pedagogia não talham educadores. Poetas, artistas e educadores nascem naturalmente, diria Rubem Alves, aproximando-se da perspectiva platônica de inerência do conhecimento ao espírito do homem. Talvez acrescentasse ao pensamento de Rubem Alves a convicção aristotélica de que qualquer pessoa pode freqüentar aulas de letras, de artes ou de pedagogia, entretanto apenas quem se compromete realmente se transforma em literato, artista (em sentido amplo) ou educador (função bem diferente da de professor).
Paulo Autran e Paulo Freire são assim: nasceram homens comuns e distinguiram-se dos demais não por se “transformarem” respectivamente em ator e educador, mas por “serem” ator e educador. Quem tem a curiosidade de ler – e quem tem curiosidade de ler? Os professores? – qualquer obra de Paulo Freire descobre as palavras sintaticamente elaboradas na construção metafórica eficiente, encantadora, persuasiva. Manifesta-se a poesia pelo poder de encantar e persuadir.
Quem tiver a oportunidade – e quem vai ter oportunidade? Os atores de teatro, de cinema e de televisão? – de assistir a algum vídeo de Paulo Autran descobrirá seu brilhantismo que se sobressai não apenas nos palcos e nas câmeras, mas se espalha pela voz na leitura de crônicas e de poesias. Basta ouvi-lo declamando “A mulher madura”, de Affonso Romano de Sant’Anna, as elucubrações de Fernando Pessoa ou a música de Carlos Drummond de Andrade para, sem muito esforço e sem necessidade de erudição, perder-se em pensamentos provocados por sua voz poética. Poesia que encanta e persuade.
Geralmente não me considero admirador do Mario Quintana poeta, mas reconheço inquestionavelmente a maturidade e a suavidade do cronista Mario Quintana que afirmou que o poeta vale por seu poder de feitiço. Se realmente estiver correto, Paulo Autran e Paulo Freire lançaram encantamentos e agora usufruem dos resultados dos feitiços sobre milhões de admiradores (brasileiros ou não). Encantamentos e feitiços que, se eventualmente esmaecerem na memória coletiva, ficarão grudados nos patronatos com os quais foram justamente contemplados.
*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 27 de abril de 2012.