sábado, 31 de março de 2012

CORTE DE CABELO


Por Vicentônio Silva






Carregava caixas durante a mudança de um amigo quando, tropeçando no tapete, caí sobre o sofá e espalhei os álbuns. A mãe de meu amigo socorreu-me. Enquanto ensaiava maneiras de colocá-los de volta à caixa, indaguei o motivo de tantos álbuns. Tratava-se de mais ou menos cento e trinta anos da história da família que chegara de outro país. Estabelecera-se inicialmente em São Paulo, depois partiu ao Paraná, permaneceu alguns anos no Rio Grande do Sul até que, por motivos quaisquer de desentendimentos entre vizinhos – provavelmente o filho de um quisera seqüestrar a esposa ou a filha do outro – resolveu mudar-se ao interior de São Paulo onde, desde então, cultiva terras e negocia gados. Anos mais tarde transferiu-se para Presidente Prudente, Presidente Epitácio e Araçatuba.



Quando colocávamos o último álbum na caixa, um retrato pousou sobre o tapete. A imagem inquietara-me: fotografia em preto e branco, bom estado de conservação, trazendo um senhor de idade avançada, duas mulheres, três homens e uma criança aparentando dez anos. A imagem me inquietara porque todos – enfatizo, todos – os modelos estavam carecas.



Curiosíssimo com a situação, perguntei quem eram aquelas pessoas. Jamais tinha visto aquela foto – ou pouco reparara na inusitada situação de pessoas carecas sendo fotografadas. Prometeu-me que, assim que colocasse as coisas em ordem na nova casa, mataria minha curiosidade e, como maneira de honrar a palavra, deixou-me o retrato.



Passaram-se quase dois meses quando me telefonou num fim de tarde informando da chegada de parentes de Araçatuba. Apareci no almoço de domingo. A foto, passando de mão em mão, nada significava aos olhos atentos.



Sem sucesso, recorremos, antes de os parentes de Araçatuba retornarem às áridas terras do norte paulista, a alguns familiares de Presidente Prudente nas casas de quem tivemos boa guarida, mas nenhuma informação. Presidente Epitácio: última tentativa. Marcamos viagem para o fim de semana na intenção de conversar com tios septuagenários.



O primeiro tio misturava histórias, confundia datas, trocava nomes de pessoas e de lugares. O segundo e o terceiro deram-nos boa quantidade de chá – que povo para gostar de chá! – entretanto nada esclareceram. Muito atencioso, o quarto tio riu-se excessivamente até que as lágrimas despencaram e a sugestão de epidemia de piolho tomasse forma. Faminto e irritado, pronto para dispensar qualquer informação do quinto tio, na verdade, tia.



Assim como os irmãos, dona Madalena encheu-nos de chá. Estiquei-lhe a foto. Tomou-se de silêncio, os olhos umedeceram, um vento leve de rio entrou pela janela sacudindo os cristais pendurados. Um dos adultos tinha sido seu namorado.



Sem saber se me desculpava por lhe trazer lembrança dolorosa, se continuava em silêncio ou se saía sem dizer palavra, explicou que o menino, sobrinho do namorado e neto do velho, recebera o diagnóstico de câncer. Opção de tratamento químico, ainda em teste. Com o tempo, os cabelos do menino cairiam. O avô – sabia as operações matemáticas elementares para manter seus negócios – sugeriu a careca. Evitaria constrangimentos maiores ao menino e dores à nora. O menino aceitou, mas, na hora do corte, imaginou-se motivo de chacota.



O pai e a mãe argumentaram, a tia tentou persuadi-lo, o namorado da tia usou de seus artifícios de vendedor. O menino manteve-se inalterável. O avô – dono de praticidade invejável – fez sinal para que levantasse e pediu corte total. Assim que se levantou, o pai do menino também aderiu à tesoura e à lâmina, seguido da esposa que, para surpresa de todos, dispensou os quase cinqüenta centímetros de cabelos ruivos. Esperando sua vez, um amigo da família saiu de cabeça lisa. A tia tomou o lugar e o namorado, menos por solidariedade do que por amor, igualmente livrou-se dos cabelos crespos. Para lembrar-se do episódio, a foto.



Rubem Alves nos ensina que muitas vezes não é preciso dizer nada, mas apenas fazer. Educação é assim: não é preciso explicar, argumentar ou convencer. Muitas vezes é preciso simplesmente fazer.


 

*Publicado originalmente na coluna Ficções, Caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 30 de março de 2012.

sexta-feira, 23 de março de 2012

GÊNIO EUGÊNIO


Por Vicentônio Silva


O nome viera da convicção paterna: assim que começasse a encadear as primeiras frases, tornar-se-ia motivo de inveja, de admiração e de reverência. Nos esportes, genialidade desmentida pelos problemas de articulação, de condicionamento físico e de percepção. Ensaiou frustrantes atuações no futebol, vôlei, basquete, natação, pólo aquático, hipismo, corridas de moto e de carro, dama, xadrez, tênis, ping-pong, patinação, ciclismo, musculação, ginástica, hóquei e rúgbi.

Na escola, mal conseguia concentrar-se numa crônica de Paulo Mendes Campos, Rony Farto Pereira, Ferreira Gullar, Sergio Porto ou Fernando Sabino; nas fórmulas elementares de matemática, química e física; nas informações entrecortadas de biologia; nos rios, mares, climas e capitais de geografia; nas datas, momentos e personagens importantes da história; nas regras gramaticais, poesias parnasianas, escolas literárias; nos nomes dos pintores e compositores clássicos de Educação Artística.

No mundo empresarial, dispersavam-se as informações entre prazos de execução de nota promissória e cheque, diferenças da duplicata, vantagens da compra por atacado e por varejo, benefícios de vender a juros compostos e prazos a perder de vista aos consumidores de confiança, poupar, gastar menos do que se ganha, divulgar apelativamente nos meios de comunicação.

Chegou a entrar num curso de culinária. No primeiro prato, servido aos familiares num tradicional almoço de domingo, as crianças devolveram a comida mal a tinham colocado na boca. Entrou nos vinhos a fim de indicar e aprovar as melhores safras. Duas semanas consecutivas de estardalhaços, quase fechou o restaurante do amigo do pai.

Eugênio não se vestia mal, malhava na academia do quarteirão de sua casa, acordava cedo, dentes brilhantes e cabelos bem tratados. Sempre cheiroso. Numa última tentativa de salvar a famigerada genialidade, o pai descobriu o dom de conquistar, envolver e desajuizar mulheres.

- É isso que vais fazer, disse, orgulhoso, dando orientações da abordagem. Primeiro, no calçadão. Depois, nos shoppings. Em seguida, nas faculdades. Então, lançaria mão de artifícios mais arrojados como supermercados, feiras livres, quermesses, encontros religiosos, enterros e procissões. Por fim, a abordagem nos ônibus lotados e nas filas de banco.

O gênio passeava pelo calçadão quando encontrou uma Flor do Campo de pouco mais de vinte anos que morava em Martinópolis. Conversaram, trocaram e-mails e telefones, voltaram a se falar, firmaram compromisso e o namoro seguia às sextas, sábados e domingos.

Os seis primeiros meses mereciam presente de comemoração. Incentivado e instigado pelo pai, saiu novamente ao calçadão onde, sem muito esforço, voltou a se engraçar com um Lírio com quem, mais uma vez, trocou e-mails e telefones, convidou para tomar sorvete e passou a namorar às terças e quartas, depois do pôr-do-sol e antes do nascer do dia.

A vida parecia-lhe boa: fim de semana, Martinópolis, Flor do Campo; dias úteis, Lírio de Presidente Prudente. Duas coelhas com uma só cajadada, falava para si mesmo, cônscio de que a genialidade, prevista pelo pai, finalmente dava-lhe bons frutos.

A Flor do Campo de Martinópolis telefonou inesperadamente no fim da tarde de quinta-feira, perguntando se poderia visitá-la naquela noite a fim de opinar sobre assuntos delicados que estavam tirando o sono. Muito solícito, Eugênio – cuja folga das duas se dava na segunda e na quinta – surgiu às vinte horas e dezessete minutos. Sempre chegava atrasado aos compromissos. Entrou radiante na sala da Flor do Campo de Martinópolis que, vestindo bermuda velha e camisa das eleições passadas, pegou a pizza, abriu largo sorriso, colocou a comida sobre a mesa, amarrou o cabelo em rabo de cavalo:

- Que bom que chegou! Minha amiga e eu estávamos esperando para discutir um assunto que muito nos interessa. Talvez você já a conheça, mas não deve tê-la visto.

Eugênio virou-se: sentada numa cadeira de mogno, pernas cruzadas, o Lírio de Presidente Prudente segurava um taco de baseball.


*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 23 de março de 2012.