Por
Vicentônio Silva
O
perito participara de audiência pública em Rancharia, entregara laudos em
Paraguaçu Paulista, demorara-se quase duas horas em Assis e rumava a Londrina,
segunda maior cidade do Paraná e quarta mais populosa da região Sul, quando,
sem controlar os pedidos insistentes do estômago, avistou a placa indicativa de
três quilômetros de distância de Florínea. O início do perímetro urbano apresentava
transformações arquitetônicas: um centro de convivência do idoso e um prédio de
recreação talhados em estilo arrojado e completamente espelhados.
Metros
adiante, a inovação de calçadões intercalados com ruas pela metade despertou a
curiosidade imediatamente sufocada por uma padaria de ares modernosos que, na
ausência de restaurantes, churrascarias ou lanchonetes apresentáveis, assumia o
papel de fornecedor oficial de comida. Vislumbrou opções de salgadinhos, doces,
lanches, produtos industrializados e caseiros, escolheu um enroladinho de
salsicha, um pastel de carne, um de frango e um de queijo, uma fatia de pizza,
duas coxinhas, pedaço considerável de pudim e cinco brigadeiros aos quais
alcançou uma Coca-Cola de seiscentos mililitros.
Engoliu
a comida com a rapidez indispensável – precisava chegar ao centro comercial de
Londrina em menos de uma hora – e direcionou-se ao caixa. A fila pequena –
apenas três senhoras o antecediam – inspirou tranqüilidade. Os bons motivos de
viver numa cidade pequena: os compromissos resolviam-se eficientemente. Buscou,
ao fundo da padaria, dois pacotes de bolachas recheadas, um de suco de laranja
e um de batatas fritas. As três mulheres continuavam imóveis. O relógio
diagnosticava quatro minutos. Preocupado com o tempo, percebeu que o caixa – um
homem de barba preta e cabelos cinematográficos – conversava com a cliente,
respondendo sobre o período adequado de remédios de reumatismo.
A
mulher do reumatismo saiu, a segunda cliente aproximou-se e, agora, depois de
solicitar a soma dos produtos – cinco pães, uma caixa de leite e cem gramas de
queijo – discorria sobre os vestidos de duas adolescentes que entraram no meio
da missa de domingo, roubando a cena do padre, destoando olhares femininos e
pensamentos masculinos. O homem assentiu, contou as moedas, perguntou se não
gostaria de deixar pago o frango – a padaria também vendia frangos aos domingos
– e satisfez-se com a negativa: receberia parentes no fim de semana e ela mesma
providenciaria a refeição. Talvez a segunda mulher finalmente concluísse sua
operação, entretanto, por ordem e desígnio da consciência incontrolável, detalhou
as operações da coleta de mantimentos para cestas básicas distribuídas aos
pobres. Aproveitou para falar de seu desapego das coisas materiais, de sua
devoção aos santos e anjos, de seu compromisso inabalável do dízimo mensal –
atrasava de vez em quando, é verdade – do comprometimento com as crianças da
escola...
O
perito consultara o relógio inúmeras vezes e, angustiado com a demora, pensou em
pedir licença à terceira cliente e adiantar-se na fila, mas sua decisão encerrou-se
ao convencer-se de que, finalmente, a segunda mulher pegava seu embrulho,
conferia o troco e saía pela porta lateral parando, assim desceu o degrau, o
primeiro transeunte. O que ele achava da reforma da casa da professora?
Quase
dezesseis minutos transcorreram desde que entrara na fila de três pessoas. A
terceira cliente pagava um refrigerante comprado fiado na véspera e, ao mesmo
tempo, falava pausadamente a respeito dos problemas dos netos nas lições de
matemática, obviamente culpando o professor da matéria que vinha de
Sertanópolis numa moto empoeirada...
Deduzindo
que a conversa alongar-se-ia ao máximo, calculou o valor total do consumo e dos
produtos de mão, consultou novamente o relógio e jogou trinta reais sobre o
balcão. Jogou os produtos no banco do carona, colocou o cinto, ligou o rádio,
entrou na rua paralela e já alcançava a rotatória de acesso à rodovia quando a
polícia, acendendo a luz vermelha giratória e o som característico de
averiguação, mandou parar no acostamento.
O
policial indagou de onde vinha, para onde ia, se entrara em algum
estabelecimento comercial e, declarando o consumo na padaria, obteve resposta
negativa ao pedido de liberação. Dez, dezessete, vinte e três minutos. Já
perdera o compromisso e mentalizava o prejuízo. Trinta e dois minutos depois, o
homem da padaria, guiando uma bicicleta, encostou:
-
O senhor é muito apressado, moço. O dinheiro que deu estava errado.
O
perito procurava uma nota de vinte reais na carteira quando o padeiro
completou:
-
Aqui está seu troco.
Quarenta
e cinco centavos.
*Publicado
originalmente na coluna Ficções,
caderno Tem, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 18 de maio de 2012.
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